Manejo Clínico com Fibras Alimentares
Introdução
As fibras alimentares são componentes essenciais da dieta, reconhecidas por seus múltiplos benefícios à saúde, especialmente no trato gastrointestinal e no metabolismo. Este documento aborda a classificação, as fontes, os mecanismos de ação e as recomendações de ingestão de fibras, com foco em sua aplicação clínica em condições como diabetes mellitus e síndrome do intestino irritável (SII), além de sua interação com a microbiota intestinal.
Características Gerais das Fibras Alimentares
Fibras alimentares são polímeros não digeríveis, constituídos por oligo ou polissacarídeos de glicose, frutose e/ou galactose. Podem ser classificadas em solúveis ou insolúveis (1). A maioria dos alimentos ricos em fibras contém uma proporção de aproximadamente 1/3 de fibras solúveis e 2/3 de fibras insolúveis (1).
A microbiota intestinal é capaz de fermentar as fibras, gerando compostos benéficos como os ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), incluindo acetato, butirato e propionato (2). Estudos indicam que o consumo de fibras que promovem a produção de AGCC pode aumentar a secreção de peptídeos envolvidos na regulação do apetite, por meio do aumento da expressão colônica de proglucagon, PYY e GLP-1, concomitantemente à diminuição dos níveis de grelina (3).
Classificação e Propriedades das Fibras
Apesar de serem frequentemente consideradas um grupo homogêneo, as fibras exibem características distintas em termos de solubilidade, fermentabilidade e viscosidade, o que resulta em diferentes efeitos no trato gastrointestinal (7). Podem ser classificadas pela estrutura (carboidratos de cadeia curta ou longa), solubilidade, viscosidade (grau de resistência ao fluxo) e fermentabilidade (capacidade de serem metabolizadas pela microbiota na ausência de oxigênio) (7).
Carboidratos de Cadeia Curta
Neste grupo, destacam-se os Fruto-oligossacarídeos (FOS) e os Galacto-oligossacarídeos (GOS) (7). Ambos promovem o crescimento de Bifidobacteria, resultando em maior produção de AGCC e gases (7).
Fibras Insolúveis
As fibras insolúveis incluem celulose, lignina, hemiceluloses e pectinas insolúveis (6).
Fontes: Grãos integrais e fibras de cereais (farelo de milho e trigo) que contenham celulose, hemicelulose e lignina (1).
Características: Atuam predominantemente no intestino grosso, na porção distal (6). Não formam géis, mas promovem o aumento do bolo fecal, sendo eficazes no tratamento da constipação, embora com efeitos limitados em outras morbidades (4, 6). Reduzem o tempo de trânsito intestinal no cólon, facilitando e acelerando a eliminação fecal (6). Geralmente apresentam um grau de fermentação moderado a pequeno no cólon (1). As fibras insolúveis não demonstram efeitos diretos no metabolismo da glicose e da insulina, apesar de evidências epidemiológicas sugerirem que previnem o desenvolvimento de diabetes mellitus independentemente da carga glicêmica ou do IMC (1).
Fibras Solúveis
As fibras solúveis compreendem pectinas, beta-glicanas, gomas, mucilagens e algumas hemiceluloses (6).
Fontes: Aveia, psyllium e goma-guar (1).
Características: Atuam principalmente na porção superior do trato gastrointestinal, especificamente no intestino delgado, onde ocorre a digestão e absorção de nutrientes, incorporando água à sua estrutura (6). São as fibras mais fermentáveis e exibem efeitos probióticos, aumentando a produção de AGCC, o que está associado à saúde intestinal e, indiretamente, à melhora da constipação (4). Formam géis, e a viscosidade dessas fibras pode retardar o esvaziamento gástrico, promovendo saciedade. No intestino delgado, podem dificultar a ação de enzimas hidrolíticas, retardando a digestão e permitindo uma absorção mais lenta de nutrientes (1). Isso impacta a resposta pós-prandial, especialmente de glicose e ácidos graxos (1, 6). Adicionalmente, contribuem para a diminuição do colesterol plasmático (6). Foi observado que a fibra solúvel melhora os sintomas gerais de constipação, como esforço, dor durante a evacuação e consistência das fezes, além de aumentar o número de evacuações semanais (7).
Tipos de Fibras por Características Específicas
- Solúvel, viscosa e fermentável: Ex: Goma-guar (7).
- Solúvel, viscosa e não fermentável: Ex: Psyllium, Hidroximetilpropilcelulose (HPMC) (7).
- Solúvel, não viscosa e fermentável: Ex: Inulina, FOS, GOS e Pectina (7).
- Solúvel, não viscosa e não fermentável: Ex: Goma Guar Parcialmente Hidrolisada (GGPH) (7).
- Insolúvel e de fermentação lenta: Ex: Aveia e Amido resistente (7).
- Insolúvel e não fermentável: Celulose e lignina (7).
As fibras solúveis de fermentação rápida, encontradas em legumes, trigo, batata, arroz, atuam como prebióticos, aumentando a biomassa e indiretamente a massa fecal, com consequente produção de gases (7). As fibras solúveis com fermentação moderada retêm grandes quantidades de água, formando géis que normalizam a consistência fecal, sendo as mais estudadas para constipação e SII-C (7). As fibras insolúveis presentes na aveia atuam no trânsito intestinal por meio de um estímulo irritativo na mucosa, que induz a secreção de água e muco (7). No entanto, esses achados foram observados apenas com partículas grandes de farelo (7).
Recomendações e Aplicações Clínicas
Diabetes Mellitus
No contexto do diabetes, a American Diabetes Association (ADA) e a Canadian Diabetes Association (CDA) atualizaram suas diretrizes em 2015, recomendando uma ingestão de 30-50g/dia de fibras alimentares para diabéticos (1). A recomendação geral é de 14g de fibras a cada 1000kcal/dia. Fibras solúveis como as beta-glucanas da aveia, psyllium e goma-guar são particularmente recomendadas para indivíduos com DM2, visando melhorar a resposta pós-prandial da insulina e glicose, além de seu efeito anti-hipertensivo (1). O consumo de aveia (beta-glucana) contribui para reduzir a glicemia ao atrasar o esvaziamento gástrico, permitindo uma absorção mais gradual da glicose (1). A goma-guar, fibra solúvel, demonstrou benefícios na redução do colesterol e na diminuição da resposta glicêmica pós-prandial (4).
Síndrome do Intestino Irritável (SII)
O aumento do teor de fibra dietética pode beneficiar significativamente a consistência e a frequência das evacuações em pacientes com SII na forma constipada, especialmente quando associado a um maior consumo hídrico e atividade física. Contudo, alguns pacientes podem não apresentar alívio da dor abdominal, apesar da melhora no número de evacuações (6).
Fibras e Bolo Fecal
O consumo de fibras é eficaz na regulação do tempo de trânsito intestinal e na redução da constipação. Isso ocorre pelo aumento do tamanho do bolo fecal, modificação na consistência das fezes, aumento da motilidade intestinal e efeitos na microbiota intestinal (4, 5). As fibras insolúveis aumentam a viscosidade e o volume das fezes, tornando-as mais macias e eficazes no tratamento da constipação, embora com efeitos limitados em outras morbidades (4). As fibras solúveis, por serem mais fermentáveis, exibem efeitos probióticos, aumentando a produção de AGCC, o que está associado à saúde intestinal e, indiretamente, à melhora da constipação (4). Sugere-se que as fibras insolúveis diminuem o tempo de trânsito intestinal pela redução da pressão no cólon, via fermentação e produção de AGCC (4). É fundamental estar atento à possível geração de gases e desconforto intestinal, e ressaltar a importância do aumento na ingestão de líquidos (5).
Goma-Guar
A Goma-Guar é uma fibra solúvel com diversos benefícios fisiológicos, incluindo a redução do colesterol, diminuição da resposta glicêmica pós-prandial e melhorias na constipação e na SII (4). Grande parte dos estudos indica que 5-7g/dia de goma-guar são suficientes para melhorar a constipação (4). A ingestão de altas quantidades (36g/dia) não mostrou efeitos colaterais significativos, exceto por um aumento inicial nas flatulências, e foi capaz de aumentar a produção de AGCC, especialmente ácido acético, e diminuir o colesterol sérico (4). Suplementação de 21g/dia também foi considerada segura, melhorando a consistência fecal (4). É importante notar que 12,5g de fibra-guar equivalem a 10g de fibra dietética (4). Um estudo demonstrou que uma dieta com 30g/dia de fibra não teve melhora adicional com o consumo “aditivo” de fibra-guar na constipação (4). A fibra-guar tem sido considerada uma potencial substituta para fibras insolúveis, laxantes e outros tratamentos da constipação, pois não apresentou efeitos colaterais na dosagem de 5g/dia (4). Quatorze estudos, envolvendo 631 pessoas, mostraram melhora na constipação com goma-guar, sendo 8 desses estudos com doses menores que 10g/dia (4). A disponibilidade de substrato no cólon resulta no aumento do número de bactérias e, consequentemente, no aumento do bolo fecal (1).
Fibras e Microbiota Intestinal
Fibras como inulina, Fruto-oligossacarídeos (FOS) e Galacto-oligossacarídeos (GOS) são exemplos de prebióticos, que servem como substrato energético para as bactérias residentes da microbiota intestinal (2).
Tipos de Prebióticos e Fontes:
- FOS – Fruto-oligossacarídeos: alcachofra, alho-poró, cebola, alho, tomate, banana, trigo, mel, cevada, chicória (1).
- GOS – Galacto-oligossacarídeos: leite ou soro do leite (1).
- Oligossacarídeo do leite humano – HMO.
- Amido Resistente: grãos integrais, leguminosas, batata crua, banana crua, banana-verde (1).
- Inulina: chicória, batata yacon, cebola, alho-poró, trigo, aspargos, banana (1).
É importante ressaltar que nem toda fibra é considerada probiótica, embora a maioria possua essa característica.
Suplementação de Fibras
Suplementos à base de FOS podem, em alguns indivíduos, gerar desconforto intestinal (7). Recomenda-se iniciar a suplementação com doses menores e aumentar gradualmente para permitir a adaptação do trato gastrointestinal e da microbiota.
Referências Bibliográficas
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