O Iodo na Saúde Humana: Da Fisiologia à Aplicação Clínica
Introdução
O iodo é um micronutriente essencial, indispensável para a formação e estrutura dos hormônios tireoidianos, tiroxina (T4) e tri-iodotironina (T3) (1). Sua importância transcende o metabolismo da tireoide, impactando diretamente o desenvolvimento neurológico, físico e a saúde geral. Este documento aborda a fisiologia do iodo, suas recomendações nutricionais, métodos de avaliação do estado nutricional, e as consequências da deficiência e do excesso, com foco nas gestantes e atletas.
Fisiologia do Iodo
Biodisponibilidade e Metabolismo
O iodo ingerido é convertido em íon iodeto antes da absorção, sendo 100% biodisponível e absorvido quase por completo no intestino delgado (2). A absorção dietética é rápida e quase total (>90%), ocorrendo tanto no estômago quanto no duodeno (2). O iodeto é transportado na corrente sanguínea livremente ou ligado a proteínas no plasma (4).
Fatores que afetam o conteúdo de iodo nos alimentos incluem métodos de cocção: a fervura reduz o conteúdo de iodeto em quase 50%, enquanto a fritura o diminui em 20% (1). Além disso, componentes da dieta, especialmente vegetais do gênero das crucíferas (ricos em compostos sulfurados como glucosinolatos), podem afetar a absorção de iodo (1).
A entrada de iodo na tireoide ocorre por um mecanismo de transporte dependente de energia, mediado pelo simportador sódio-iodo (NIS) (1, 4). Este transportador é estimulado pelo hormônio tireoestimulante (TSH), secretado pela hipófise (1). Uma vez na tireoide, o iodo participa da síntese dos hormônios T3 e T4, os únicos hormônios biologicamente ativos que contêm iodo em sua estrutura (1, 4). Sua excreção ocorre predominantemente (90%) pela via urinária (1).
O conteúdo total de iodo no organismo é de aproximadamente 15-20 mg, sendo que 70-80% estão acumulados nas estruturas da glândula tireoide (2). O iodo é um elemento muito volátil, e sua quantidade no sal iodado tende a diminuir com o tempo.
Recomendações Nutricionais e Fontes
Ingestão Dietética Recomendada (RDA) e Limite Superior Tolerável (UL)
- RDA para adultos (>19 anos): 100-150 mcg/dia (2).
- RDA para gestantes: 220 mcg/dia (2).
- RDA para lactantes: 290 mcg/dia.
- UL (Upper Limit): 1100 mcg/dia (2).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2007 recomendou as seguintes doses:
- Gestantes: 250 mcg/dia (4).
- Mulheres entre 15-49 anos: 150 mcg/dia (4).
- Crianças < 24 meses: 90 mcg/dia (4).
- Nutrizes: 250 mcg/dia (4).É importante notar que alguns autores defendem que a suplementação de gestantes só deve ocorrer após o diagnóstico individual de deficiência para evitar a ingestão excessiva (4).
Fontes Alimentares
As principais fontes alimentares de iodo incluem alimentos marinhos, leite, ovos, carnes e cereais (2). Produtos vegetais são geralmente pobres em iodo, e seu conteúdo depende do solo em que foram cultivados (2).
É fundamental considerar o consumo de substâncias bociogênicas, que podem ser derivadas de flavonoides (soja), glicosídios cianogênicos (mandioca) e glicosinolatos (vegetais crucíferos). Essas substâncias são capazes de liberar quantidades significativas de cianeto por hidrólise e de competir pela captação de iodo pela glândula tireoide, podendo ser um fator para o desenvolvimento do bócio (2). Exemplos de fontes de substâncias bociogênicas incluem mandioca, milho, broto de bambu, batata-doce, couve-flor e variedades de leguminosas (2).
Fortificação de Alimentos com Iodo
A iodação universal do sal foi reconhecida em 1994 como uma estratégia segura e sustentável para garantir a ingestão suficiente de iodo (4). No Brasil, o sal deve conter um teor igual ou superior a 15-45 mg/kg de sal (2, 4). Para populações com elevado consumo de sal, a quantidade fixada de iodo é de 14 mg/kg de sal, enquanto para populações com baixo consumo, a quantidade pode ser de 65 mg/kg de sal (4). Cerca de 147 países já implementaram a iodação do sal, resultando em 90% da população mundial consumindo sal iodado (4).
Suplementação Nutricional
A suplementação de iodo deve ser cuidadosamente monitorada para evitar doenças causadas pelo excesso (2). Deve ser implementada principalmente em áreas onde a iodação do sal é inexistente ou pouco efetiva, como estratégia temporária (4). O consumo excessivo de iodo pode causar sintomas agudos de irritação no trato gastrointestinal (dor abdominal, náuseas, vômito e diarreia), sintomas cardiovasculares e cianose (2).
Avaliação do Estado Nutricional de Iodo
Para a avaliação do estado nutricional de iodo, diversos exames bioquímicos e indicadores clínicos são utilizados:
- Iodo urinário (2, 4) (padrão ouro para ingestão recente).
- Concentração de TSH (2).
- Concentração de tireoglobulina (TG) (2).
- Presença de Bócio (2).
Concentração de Iodo Urinário (CIU)
A CIU é o indicador mais sensível e reflete a ingestão aguda de iodo, pois cerca de 90% do iodo ingerido é excretado na urina (2, 3, 4). Valores de referência da CIU:
- <20 mg/L: Deficiência severa (3).
- 20−49 mg/L: Deficiência moderada (3).
- 50−99 mg/L: Deficiência leve (3).
- 100−299 mg/L: Excelente (3).
- >300 mg/L: Níveis elevados (3).A obtenção de amostras de urina casuais é fácil e requer baixo volume (4). Com o avanço dos programas de prevenção das Desordens por Deficiência de Iodo (DDI), os níveis de iodo urinário têm sido utilizados como critérios para controle e monitoramento das DDI, mais do que para avaliar a prevalência de bócio (4).
Concentração de TSH
Na deficiência de iodo, os níveis circulantes de T4 caem, e o TSH aumenta (4). Em populações com maior prevalência de deficiência de iodo, o TSH tende a ser mais elevado, embora essa diferença possa não ser estatisticamente significativa (4). Entre os neonatos, o TSH é um indicador ideal para avaliar a deficiência de iodo, pois a tireoide neonatal tem baixo teor do mineral e uma renovação muito maior, resultando em maior estimulação do TSH em caso de deficiência (4). Pode ocorrer a “hipertireotropinemia transitória”, onde os níveis de TSH ficam aumentados nas primeiras semanas de vida devido à deficiência de iodo (4). A maioria dos países desenvolvidos realiza triagem universal de neonatos com TSH em sangue de papel filtro para detecção precoce de hipotireoidismo congênito (4).
Tireoglobulina (TG)
A TG é uma proteína precursora na síntese dos hormônios tireoidianos, encontrada em pequenas quantidades na circulação (4). A hiperplasia da glândula tireoide e o bócio, característicos da deficiência de iodo, elevam os níveis séricos de TG, que refletem o estado nutricional de iodo por meses ou anos, ao contrário da CIU que avalia a ingestão recente (4). Para indivíduos entre 5-14 anos, os valores de referência internacionais para TG sérica são entre 4-40 mcg/L (4).
Indicadores Clínicos (Tamanho da Tireoide)
A avaliação do tamanho da tireoide por palpação ou ultrassonografia é um indicador utilizado (4). Em crianças, a palpação não é prática devido ao tamanho reduzido da tireoide (4). Em áreas com prevalência de DDI leves a moderados, a sensibilidade e especificidade da palpação são baixas, e a medição por ultrassom é mais recomendada (4). No entanto, o ultrassom exige mão de obra qualificada e equipamentos de custo relativamente alto, limitando sua utilização em pesquisas (4).
Consequências da Deficiência e do Excesso de Iodo
Deficiência de Iodo
A insuficiência de iodo pode comprometer o desenvolvimento mental, neurológico, estrutural e motor, principalmente devido à sua participação nos hormônios tireoidianos (2). As Desordens Associadas à Deficiência de Iodo (DDI) incluem retardo mental irreversível, bócio, distúrbios reprodutivos e aumento da mortalidade infantil (2). Quando o organismo apresenta carência nutricional de iodo, a glândula tireoide sintetiza quantidades insuficientes de hormônios tireoidianos, afetando negativamente músculos, coração, fígado e rins (4). A deficiência é mais prevalente em países asiáticos e africanos, considerados regiões mais vulneráveis politicamente e economicamente (4).
Consequências específicas da deficiência de iodo por faixa etária (4):
- Gestantes: Abortamento espontâneo, bócio, nódulos tireoidianos e hipotireoidismo.
- Feto: Natimortalidade, anomalias congênitas, mortalidade perinatal.
- Neonatos: Cretinismo endêmico (deficiência mental, baixa estatura, diplegia espástica), hipotireoidismo e mortalidade infantil.
- Crianças e adolescentes: Deficiência na função mental, atraso no desenvolvimento físico e hipertireoidismo induzido por iodo (IIH).
- Adultos e idosos: Principalmente função mental deficiente e IIH.O bócio e o hipotireoidismo podem ocorrer em todas as idades (4).
Excesso de Iodo
O consumo excessivo de iodo geralmente não afeta a função tireoidiana, pois o excesso é excretado na urina. Contudo, em alguns casos, a glândula pode apresentar hiperatividade com produção excessiva de hormônios tireoidianos (3, 4). Também pode resultar em baixa produção de T3 e T4 e, consequentemente, hipotireoidismo, devido à inibição da proteólise da tireoglobulina (3, 4). O efeito deletério do excesso de iodo na tireoide é conhecido como efeito Wolff-Chaikoff, um mecanismo autorregulador que inibe, de forma aguda e transitória, a síntese de hormônios tireoidianos nas células foliculares (4). O excesso de iodo bloqueia a secreção hormonal e inibe a síntese de TPO, um efeito que parece depender da formação de um composto iodado não bem caracterizado, que age na enzima THox, reduzindo a produção de H2O2 e a subsequente síntese de T3 e T4 (3).
Iodo em Fases Específicas da Vida
Iodo e Gestação
O período gestacional é crítico em termos metabólicos. Alterações fisiológicas, como o aumento da filtração glomerular, eliminam cerca de 30-50% do iodo na urina, tornando a gestante suscetível à deficiência (4). Isso pode provocar um prejuízo irreversível na maturação de estruturas essenciais do feto, como o cérebro e o sistema nervoso (4). O período de maior vulnerabilidade para a deficiência é do segundo trimestre gestacional até o terceiro ano após o nascimento, pois nessa fase o iodo é essencial para o desenvolvimento cerebral (4). A deficiência de iodo é a principal causa evitável de danos neurológicos em crianças (4).
Durante a lactação, recomenda-se que as mulheres mantenham uma ingestão elevada de iodo para garantir sua quantidade suficiente no leite materno, a fim de construir reservas na glândula tireoide do recém-nascido. Em gestantes com hipertensão arterial, é importante substituir as fontes de iodo do sal por alimentos como peixes e algas.
Iodo e Exercício Físico
Indivíduos que não atingem a ingestão diária recomendada de pelo menos 150 µg de iodo têm maior probabilidade de desenvolver distúrbios ocasionados pela deficiência, que incluem fadiga e redução de desempenho físico (1). A suplementação de iodo com fins ergogênicos é pouco fundamentada na literatura científica (1).
Referências Bibliográficas
- LANCHA JR., A. H.; ROGERI, P. S.; PEREIRA-LANCHA, L. O. Suplementação Nutricional no Esporte. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019. 266 p.
- COZZOLINO, S. Biodisponibilidade de Nutrientes. 6. ed. São Paulo: Manole, 2020. 934 p.
- SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de alimentação, nutrição & dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.
- BRAGA, J. A. P.; AMANCIO, O. M. S. Deficiências Nutricionais – Manual para diagnóstico e condutas. 1. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2022. 216 p.