Doença Hemorroidária: Compreensão e Abordagens Terapêuticas
Introdução
A doença hemorroidária, embora seja uma das enfermidades mais antigas registradas na história da humanidade (7), continua a ser um desafio clínico para muitos indivíduos. Caracterizada pela manifestação sintomática de veias dilatadas na região anal, as hemorroidas são, na verdade, o resultado do deslocamento inadequado das “almofadas” anais (8). Este documento explora a fisiopatologia, o diagnóstico, as manifestações clínicas e as estratégias de tratamento, incluindo intervenções dietéticas, farmacológicas e cirúrgicas, para o manejo eficaz da doença hemorroidária.
Fisiopatologia e Anatomia
Hemorroidas são, na realidade, veias dilatadas na região anal que se tornam sintomáticas (8). O termo “doença hemorroidária” é mais apropriado, pois se refere ao deslocamento sintomático das “almofadas” anais para baixo (8). Embora não haja um consenso absoluto sobre sua fisiopatologia, acredita-se que seja multifatorial (8).
Os plexos hemorroidários são estruturas normais do canal anal que desempenham um papel na continência e na proteção do músculo esfinctérico (8). Existem três plexos principais: o lateral esquerdo, o anterior direito e o posterior direito (8). O ingurgitamento e o esforço excessivo durante a evacuação levam ao prolapso desse tecido para dentro do canal anal. Com o tempo, o sistema de suporte anatômico do complexo enfraquece, expondo o tecido ao segmento externo do canal anal, onde se torna mais suscetível a lesões e sangramentos (8).
Existem dois tipos principais de hemorroidas:
- Hemorroidas externas: Formam-se no canal anal e na região externa, sendo revestidas por pele sensível (8). Originam-se abaixo da linha denteada e são cobertas por epitélio escamoso, frequentemente associadas a um componente interno (8).
- Hemorroidas internas: Localizam-se na porção mais interna do ânus e são revestidas por mucosa intestinal (8). Originam-se acima da linha denteada, sendo cobertas por muco e epitélio da zona de transição, e são responsáveis pela maioria dos casos sintomáticos (8).
Fatores Etiopatogênicos
Diversos fatores contribuem para a etiopatogenia da doença hemorroidária:
- Veia varicosa: Dificuldade no esvaziamento sanguíneo do canal anal durante a defecação, levando à congestão e dilatação dos corpos cavernosos (7).
- Degenerativa: Prolapso anormal do plexo hemorroidário durante a evacuação devido à deficiência de sua fixação pela musculatura longitudinal da submucosa (músculo de Treitz) (7).
- Mecânica: Esforço defecatório excessivo, dieta pobre em resíduos (especialmente fibras) e baixa ingestão de líquidos, resultando em fezes endurecidas e maior esforço evacuatório (7).
- Hiperplasia vascular: Teoria que sugere a presença de hiperplasia e metaplasia dos corpos cavernosos do canal anal (7).
- Hemodinâmica: Presença de comunicações arteriovenosas de grande calibre na submucosa do canal anal (7).
- Disfunção do esfíncter anal interno: Hiperatividade do esfíncter interno do ânus com hipertonia (7).
Incidência e Epidemiologia
A prevalência de hemorroidas não é seletiva por idade ou sexo, embora a idade seja um fator de risco, afetando principalmente indivíduos entre 45 e 65 anos (8). Estima-se que mais de um milhão de pessoas no Ocidente sejam afetadas anualmente (8). Sugere-se que, aos 50 anos, metade da população já terá experimentado hemorroidas em algum momento da vida (8).
A postura ereta, característica da espécie humana, contribui para o aumento da pressão nas veias anais. Fatores como defecação difícil, uso crônico de laxativos, longos períodos sentado no vaso sanitário, gravidez e certas rotinas profissionais ou esportivas podem exacerbar essa pressão venosa, levando à dilatação (8). A hereditariedade também é reconhecida como um fator importante no desenvolvimento de hemorroidas.
Hábitos e Fatores Desencadeantes
Certos hábitos e condições podem precipitar ou agravar a doença hemorroidária:
- Constipação intestinal (7)
- Gravidez (7)
- Insistência em evacuar diariamente (7)
- Esforço para defecar em um horário específico do dia (7)
- Tentativa de esvaziar totalmente o conteúdo retal de uma só vez (7)
- Abuso de laxativos, especialmente os catárticos (7)
Manifestações Clínicas
Os sintomas mais comuns da doença hemorroidária ocorrem durante a defecação e incluem dor, sangramento e prolapso (8). O sangramento, geralmente de coloração vermelho brilhante, é indolor e pode ser visível durante ou logo após a evacuação no vaso sanitário ou no papel higiênico (8). A dor difusa não é comum, mas a inchação persistente após a defecação pode gerar desconforto e ser bastante dolorosa (8). Prurido (coceira) perianal é um sintoma frequente.
Outras manifestações podem incluir secreção mucosa ou sujidade fecal. Mulheres grávidas frequentemente desenvolvem sintomas no final da gestação, que geralmente melhoram após o parto. Contudo, podem persistir problemas crônicos que demandam atenção médica.
A procura por auxílio médico geralmente ocorre devido a duas razões principais:
- Sangramento (8)
- Protrusão (8)
Os sintomas variam conforme o tipo de hemorroida:
- Hemorroidas externas: Podem ser visíveis como uma protuberância inchada na abertura anal e são frequentemente dolorosas devido à rica inervação da área (8).
- Hemorroidas internas: Geralmente não são visíveis, a menos que haja prolapso (deslocamento e projeção para fora do ânus) (8). São tipicamente indolores, pois não há receptores de dor nessa região do reto (8).
Ambos os tipos de hemorroidas podem sofrer trombose, condição na qual um coágulo sanguíneo, embora inofensivo, forma-se na hemorroida, causando dor intensa (8).
É crucial ressaltar que muitos sintomas da doença hemorroidária podem ser indicativos de outras condições de saúde mais graves. Portanto, um diagnóstico preciso por um profissional de saúde é sempre recomendado (8).
Hemorroidas e Câncer
Não há correlação direta entre hemorroidas e câncer colorretal. No entanto, é importante notar que cerca de metade das pessoas que buscam tratamento para hemorroidas apresentam sintomas causados por outros problemas (8). Em alguns casos, o câncer pode ser a causa do sangramento anal. Assim, não é seguro presumir que o sangramento seja de origem hemorroidária sem uma avaliação especializada. Recomenda-se procurar um coloproctologista para um diagnóstico e tratamento adequados (8). Um estudo que avaliou a frequência de hemorroidas em participantes submetidos a exames de câncer colorretal revelou que mais da metade dos indivíduos com doença hemorroidária não apresentavam sintomas (8).
Diagnóstico
O diagnóstico da doença hemorroidária é realizado por meio do exame físico, que inclui a inspeção da região perianal para evidenciar possíveis tromboses ou escoriações, seguida por um exame digital minucioso do reto (8).
Um médico geralmente diagnostica hemorroidas com um exame físico, que pode incluir uma inspeção do ânus e do reto para verificar a presença de hemorroidas visíveis, ou um exame retal digital para detectar anormalidades no reto (8). Em alguns casos, um endoscópio, um pequeno tubo com luz e câmera inserido no reto, pode ser necessário para avaliar os tecidos internos e diagnosticar hemorroidas internas (8).
As hemorroidas internas são comumente classificadas com base no grau de prolapso:
- Grau I: Ocorre inchaço indolor da hemorroida, sem prolapso.
- Grau II: A hemorroida projeta-se do ânus durante as evacuações e retorna espontaneamente à posição normal.
- Grau III: A hemorroida projeta-se do ânus durante as evacuações e requer reposicionamento manual.
- Grau IV: A hemorroida projeta-se do ânus e não pode ser recolocada manualmente na posição original.
Conduta Clínica e Tratamento
Intervenções no Estilo de Vida e Dieta
O tratamento inicial e preventivo da doença hemorroidária foca na modificação de hábitos e na otimização da dieta (8). Embora as recomendações sejam baseadas em estudos, a evidência ainda é limitada, e não há um guia exato para o tratamento definitivo.
As intervenções incluem:
- Dieta rica em fibras: A ingestão de 25 a 35 gramas de fibras por dia, juntamente com uma adequada ingestão de líquidos, é considerada a intervenção de primeira linha (8). Fibras são encontradas em vegetais, frutas, grãos integrais, legumes, nozes e sementes (8). Aumentar a ingestão de fibras gradualmente pode minimizar sintomas como inchaço, gases e desconforto abdominal (8).
- Aumento da ingestão hídrica: Aumentar a ingestão de água é fundamental para amolecer as fezes (8).
- Redução do consumo de álcool: O álcool é um irritante de mucosas.
- Evitar pimentas e comidas condimentadas: A capsaicina tem sido associada ao aparecimento de sintomas, e alimentos condimentados podem irritar a mucosa (8).
- Auxiliares na evacuação: Psyllium, sene, metilcelulose e mucilagem podem ser utilizados para facilitar a evacuação (8).
- Diminuir o tempo no banheiro: Alguns estudos sugerem que um tempo de 3 a 5 minutos seria o ideal (8).
- Emagrecimento: O excesso de peso e o consequente aumento da pressão abdominal estão relacionados ao surgimento da doença hemorroidária.
- Proibição do uso de laxativos: Principalmente os catárticos, devido ao risco de agravamento (8).
Posição para Evacuar
Em pacientes com constipação intestinal, a elevação dos pés para que não toquem o chão enquanto sentado no vaso sanitário pode ser recomendada. Essa posição simula o cócoras, facilitando o relaxamento do assoalho pélvico.
Farmacologia
Sintomas leves são geralmente manejados com a correção dos hábitos alimentares, aumento da ingestão de água e fibras, e a diminuição do esforço evacuatório (8). Quando essas medidas clínicas não controlam adequadamente os sintomas, pode ser necessário um tratamento mais definitivo.
- Cremes/Pomadas e Supositórios Tópicos: Produtos de venda livre contendo zinco, corticosteroides, anestésicos e fenilefrina podem proporcionar alívio temporário dos sintomas, mas há poucas evidências que apoiam sua eficácia e segurança a longo prazo (8).
- Medicamentos Tópicos Prescritos: Nitroglicerina ou nifedipina tópicas podem ser úteis no controle da dor (8). Medicações tópicas como a cinchocaína e/ou policresuleno são indicadas para aliviar o desconforto local (7).
- Drogas Vasoativas: O uso combinado de cumarina com troxerutina ou diosmina pode ser empregado para melhorar os sintomas de sangramento, edema e inflamação em mamilos internos e/ou externos e na endoflebite local causadora de dor anal (7).
Suplementos
- Fibras: A suplementação de fibras, como o psyllium, ajuda a amolecer as fezes e reduzir a constipação, minimizando a irritação nas almofadas anais e promovendo a cicatrização (8). Uma meta-análise de ensaios controlados indicou que a suplementação de fibras reduziu pela metade o risco de sintomas gerais de hemorroidas, sendo particularmente eficaz na redução do sangramento (8). Os benefícios podem demorar até 6 semanas para se manifestar. Após a cura, a suplementação pode ser mantida como medida preventiva (8).
- Flavonoides (Diosmina e Hesperidina): A suplementação de bioflavonoides, especificamente a fração de flavonoides purificados micronizados (MPFF) contendo 90% de diosmina e 10% de hesperidina, foi avaliada em meta-análises (8). Uma meta-análise relatou redução no sangramento, vazamento anal e sintomas gerais, enquanto outra encontrou efeito apenas na redução do sangramento (8). Acredita-se que o MPFF atue reduzindo a inflamação das veias e aumentando o tônus venoso (8). No entanto, esses produtos não são atualmente aprovados pela U.S. Food and Drug Administration para o tratamento de hemorroidas (8).
Tratamento Cirúrgico e Procedimentos
O tratamento curativo da doença hemorroidária é cirúrgico (7). Para obter bons resultados, é essencial uma indicação cirúrgica criteriosa, técnica operatória apurada e cuidados pós-operatórios adequados (7).
Para hemorroidas mais graves, ou quando os tratamentos iniciais falham, o médico pode realizar intervenções não cirúrgicas (e.g., ligadura elástica) ou cirúrgicas (e.g., hemorroidectomia) para remover a hemorroida (8). Contudo, esses tratamentos mais invasivos estão associados a um alto risco de recorrência e dor pós-procedimento (8).
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