Hipoglicemia: Fisiopatologia, Etiologia e Manejo Clínico
Introdução
A hipoglicemia é uma condição caracterizada por baixos níveis plasmáticos de glicose, geralmente abaixo de 70 mg/dL. Embora frequentemente associada ao tratamento do diabetes mellitus, ela pode ser desencadeada por uma vasta gama de fatores, incluindo disfunções de órgãos, sepse, inanição, deficiências hormonais, tumores e cirurgias gástricas prévias (1). A identificação precoce e o manejo adequado são cruciais para prevenir complicações graves, como alterações neurológicas e arritmias cardíacas.
Fisiopatologia do Controle Glicêmico
As concentrações plasmáticas de glicose são mantidas entre 70-110 mg/dL em jejum, com excursões transitórias mais elevadas após as refeições (1). As reservas hepáticas de glicogênio são, em geral, suficientes para manter a glicemia por 8 horas, mas esse período pode ser reduzido em situações de aumento da demanda de oxigênio (exercício) ou depleção das reservas (doença, inanição) (1).
O equilíbrio sistêmico da glicose é regulado por uma complexa rede de hormônios, sinais neurais e substratos que controlam a produção endógena de glicose e sua utilização pelos tecidos, incluindo o cérebro (1). Nesse sistema, a insulina desempenha um papel dominante (1).
À medida que os níveis plasmáticos de glicose diminuem dentro da faixa fisiológica, a secreção de insulina também diminui, o que, por sua vez, aumenta a glicogenólise hepática e a gliconeogênese hepática e renal (1). Níveis baixos de insulina também reduzem a captação de glicose pelos tecidos periféricos e estimulam a lipólise e a proteólise, liberando precursores gliconeogênicos. Portanto, a redução da secreção de insulina constitui a primeira linha de defesa contra a hipoglicemia (1).
Quando a glicemia cai acentuadamente abaixo da faixa fisiológica, ocorre a liberação de hormônios contrarreguladores da glicose, que visam elevar os níveis plasmáticos (1). Entre esses, o glucagon (das células α do pâncreas) e a epinefrina (adrenalina) desempenham um papel primário (1).
- O glucagon estimula a glicogenólise e a gliconeogênese hepática (1).
- A epinefrina também estimula a glicogenólise e a gliconeogênese hepática (e renal), limita a captação periférica de glicose e estimula a lipólise, produzindo glicerol e ácidos graxos. Sua ação é fundamental quando o glucagon está deficiente (1).
- Se a hipoglicemia se prolongar por mais de 4 horas, o cortisol e o hormônio do crescimento também atuam na sustentação da produção de glicose e na restrição de sua utilização (1).
Manifestações Clínicas
A hipoglicemia ativa respostas pró-inflamatórias, pró-coagulantes e pró-aterotrombóticas, tanto em indivíduos com diabetes tipo 1 (DM1) e tipo 2 (DM2) quanto em não diabéticos (1). Essas respostas podem aumentar a agregação plaquetária, reduzir o equilíbrio fibrinolítico e elevar a coagulação intravascular (1).
As manifestações clínicas da hipoglicemia, resultantes da privação de glicose do sistema nervoso central, são denominadas neuroglicopênicas. Elas incluem:
- Alterações do comportamento e confusão
- Fadiga
- Crises convulsivas
- Perda da consciência
- Arritmias cardíacas
- Em casos graves, morte (1).
Outros sintomas comuns de hipoglicemia incluem:
- Palpitações
- Tremor
- Ansiedade
- Sudorese
- Fome
- Parestesia (1).
A presença de confusão mental, nível alterado de consciência ou crises convulsivas em qualquer paciente deve levantar a suspeita de hipoglicemia e ser investigada (1).
Diagnóstico e Etiologia
A hipoglicemia é diagnosticada pela Tríade de Whipple (1):
- Sintomas compatíveis
- Baixa concentração plasmática de glicose
- Alívio dos sintomas após elevação dos níveis plasmáticos de glicose
Hipoglicemia sem Diabetes
Na ausência de diabetes tratado com fármacos, a hipoglicemia é rara (1). A presença de um distúrbio hipoglicêmico é geralmente observada em pacientes que preenchem a Tríade de Whipple (1).
Em pacientes enfermos ou medicados, o diagnóstico deve focar inicialmente na possibilidade de ação medicamentosa, seguida pela investigação de doenças críticas, deficiências hormonais ou hipoglicemia por tumores de células não ilhotas (1). Na ausência desses fatores e em um indivíduo aparentemente saudável, a investigação deve se voltar para hiperinsulinismo endógeno ou hipoglicemia acidental, subreptícia ou intencional (1).
Causas da Hipoglicemia
- Medicamentos e Substâncias:
- Insulina e secretagogos de insulina: Suprimem a produção e estimulam a utilização de glicose (1).
- Etanol (álcool): Bloqueia a gliconeogênese, mas não a glicogenólise (1). A hipoglicemia induzida pelo álcool geralmente ocorre após abuso por vários dias, com ingestão alimentar reduzida e depleção de glicogênio (1). O álcool pode contribuir para a progressão da hipoglicemia em diabéticos tratados com insulina, pois a gliconeogênese se torna a via predominante de produção de glicose durante a hipoglicemia prolongada (1).
- Outros fármacos: Inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECAs), antagonistas dos receptores de angiotensina (BRAs), beta-bloqueadores, antibióticos (quinolonas), indometacina, quinina e sulfonamidas (1).
- Doenças Críticas: Em pacientes hospitalizados, doenças graves como insuficiência renal, hepática ou cardíaca, sepse e inanição são causas importantes de hipoglicemia (1).
- Insuficiência hepática: Destruição hepática rápida e extensa (ex: hepatite tóxica) pode causar hipoglicemia de jejum, já que o fígado é o principal local de produção endógena de glicose (1).
- Insuficiência cardíaca: O mecanismo é desconhecido, mas pode envolver congestão hepática e hipóxia (1).
- Insuficiência renal: A hipoglicemia pode ser causada pela depuração reduzida da insulina (aumentando a insulina em relação aos níveis de glicose), redução da mobilização de precursores gliconeogênicos e, embora os rins produzam glicose, seu papel na hipoglicemia renal é complexo (1).
- Sepse: Causa comum de hipoglicemia, devido ao aumento da utilização de glicose induzida por citocinas em tecidos ricos em macrófagos (fígado, baço, pulmão). A inibição da gliconeogênese por citocinas, no contexto de depleção de glicogênio e hipoperfusão hepática/renal, também contribui (1).
- Inanição: A hipoglicemia pode ser observada na inanição (1).
- Deficiências Hormonais: Cortisol e hormônio do crescimento não são essenciais para prevenir a hipoglicemia (1). No entanto, pode ocorrer hipoglicemia no jejum prolongado em pacientes com insuficiência adrenocortical primária (Doença de Addison) ou hipopituitarismo (1). Anorexia e perda de peso, características da deficiência crônica de cortisol, tendem a resultar em depleção de glicogênio (1). Altas taxas de utilização de glicose (exercício, gravidez) ou baixas taxas de produção (consumo de álcool) podem precipitar hipoglicemia em adultos com hipopituitarismo não diagnosticado (1). A deficiência combinada de glucagon e epinefrina é essencial na patogênese da hipoglicemia iatrogênica em diabéticos com deficiência de insulina (1).
- Tumores de Células Não-β (Hipoglicemia por Turno de Células Não-Ilhotas): A hipoglicemia de jejum ocorre ocasionalmente em pacientes com grandes tumores mesenquimais ou epiteliais (ex: hepatomas, carcinomas adrenocorticais, carcinoides) (1). Os padrões cinéticos de glicose se assemelham ao hiperinsulinismo, mas a secreção de insulina é apropriadamente suprimida durante a hipoglicemia (1). Na maioria dos casos, a hipoglicemia é devida à produção excessiva de uma forma incompletamente processada do fator de crescimento semelhante à insulina II (IGF-II grande), que não forma complexos com as proteínas de ligação circulantes e, portanto, acessa mais prontamente os tecidos-alvo (1). Em geral, os tumores são clinicamente evidentes (1). A cirurgia curativa é rara, mas a redução do volume tumoral pode melhorar a hipoglicemia (1). Terapia com glicocorticoides, hormônio do crescimento ou ambos também pode aliviar a hipoglicemia (1).
- Hiperinsulinismo Endógeno: A hipoglicemia resultante de hiperinsulinismo endógeno pode ser causada por (1):
- Distúrbio primário das células β (insulinoma, às vezes múltiplos, ou distúrbio funcional com hipertrofia/hiperplasia dessas células).
- Anticorpos dirigidos contra a insulina ou contra o receptor de insulina.
- Secretagogos das células β (ex: sulfonilureia).
- Secreção ectópica de insulina (muito rara).
- A característica fisiopatológica fundamental é a incapacidade da secreção de insulina de cair para níveis baixos durante a hipoglicemia (1). Isso é observado quando a glicemia é < 55 mg/dL com sintomas, e as concentrações de insulina são ≥ 3 μU/mL; peptídeo-C ≥0,6 ng/mL; e proinsulina ≥5,0 pmol/L (1).
- A estratégia diagnóstica inclui a medição de glicose, insulina, peptídeo C, proinsulina e β-hidroxibutirato plasmáticos durante o episódio, e a avaliação da resolução dos sintomas após a correção da hipoglicemia com injeção intravenosa de glucagon (1).
- Um insulinoma não é a única causa de hiperinsulinismo endógeno (1). Alguns pacientes apresentam comprometimento difuso das ilhotas com hipertrofia e, por vezes, hiperplasia das células β. Outros podem exibir um padrão semelhante de ilhotas, mas com hipoglicemia pós-prandial, denominada hipoglicemia pancreatogênica não-insulinoma (1). Os insulinomas são incomuns (incidência anual estimada em 1 em 250.000 casos), mas são uma causa tratável de hipoglicemia potencialmente fatal, sendo 90% benignos (1).
- Erros Inatos do Metabolismo: A hipoglicemia não diabética também pode resultar de erros inatos do metabolismo, mais comuns na lactância, mas observáveis na vida adulta (1).
- Hipoglicemia de jejum: Distúrbios raros da glicogenólise, como doença de depósito de glicogênio (DDG) tipo 0, I, III, IV e síndrome de Fanconi-Bickel (1).
- Hipoglicemia pós-prandial: Erros inatos que resultam em hipoglicemia pós-prandial são raros (1).
- Hipoglicemia Induzida por Exercício: Ocorre após atividade física e resulta de hiperinsulinemia causada pela atividade aumentada do transportador de monocarboxilato 1 nas células β (1).
Referências Bibliográficas
- JAMESON, J. L. et al. Medicina Interna de Harrison. 20. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2021. 3522 p.