O Fígado: Anatomia, Fisiologia e Funções Metabólicas Cruciais
Introdução
O fígado, o maior órgão do corpo humano, desempenha um papel central em inúmeros processos fisiológicos essenciais para a manutenção da homeostase. Sua complexa arquitetura e vasta gama de funções metabólicas o tornam um órgão vital, fundamental para a digestão, o metabolismo de nutrientes, a desintoxicação e a regulação de diversas substâncias no organismo.
Anatomia Hepática
O fígado representa cerca de 2% do peso corporal total de um adulto, aproximadamente 1,5 kg (1). A sua unidade funcional básica é o lóbulo hepático, uma estrutura cilíndrica com alguns milímetros de comprimento e diâmetro. O fígado humano é composto por cerca de 50.000 a 100.000 lóbulos individuais (1).
Cada lóbulo hepático é organizado em torno de uma veia central, que drena para as veias hepáticas e, subsequentemente, para a veia cava (1). O lóbulo em si é formado por múltiplas placas celulares (placas hepáticas) que se irradiam da veia central, assemelhando-se aos raios de uma roda (1).
Geralmente, cada placa hepática possui a espessura de duas células. Entre as células adjacentes, encontram-se os pequenos canalículos biliares, que coletam a bile e drenam para os ductos biliares localizados nos septos fibrosos que separam os lóbulos hepáticos adjacentes (1).
Nos septos, também há pequenas vênulas portais que recebem sangue predominantemente do trato gastrointestinal, através da veia porta (1). Desse ponto, o sangue flui para os sinusoides hepáticos, vasos lisos e ramificados que se intercalam entre as placas hepáticas, e que, por sua vez, drenam para a veia central. Assim, as células hepáticas (hepatócitos) estão continuamente expostas ao fluxo sanguíneo venoso da veia porta (1).
Os sinusoides venosos são revestidos por hepatócitos, células endoteliais típicas e células de Kupffer. As células de Kupffer são macrófagos residentes que revestem os sinusoides e são altamente eficientes na fagocitose de bactérias e outras partículas estranhas presentes no sangue (1).
Fisiologia Hepática
Sistema Vascular e Linfático do Fígado
Fluxo Sanguíneo
O fígado é caracterizado por um elevado fluxo sanguíneo e uma baixa resistência vascular (1). Aproximadamente 1 litro de sangue da veia porta e 300 ml adicionais da artéria hepática fluem para os sinusoides hepáticos a cada minuto, totalizando uma média de 1,3 L/min. Isso equivale a cerca de 27% do débito cardíaco de repouso (1). A pressão na veia porta hepática é de aproximadamente 9 mmHg, enquanto a pressão na veia hepática que drena para a veia cava tem uma média de 0 mmHg (1).
Cirrose Hepática e Resistência ao Fluxo Sanguíneo
A cirrose hepática é um processo patológico em que a destruição das células parenquimatosas hepáticas é seguida pela substituição por tecido fibroso. Esse tecido fibroso se contrai ao redor dos vasos sanguíneos, impedindo o fluxo sanguíneo através da veia porta (1). A cirrose é frequentemente uma consequência do alcoolismo crônico ou do acúmulo excessivo de gordura no fígado com inflamação subsequente, uma condição conhecida como esteato-hepatite não alcoólica (NASH) (1). A forma mais branda de acúmulo de gordura e inflamação é a doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD), que é a causa mais comum de distúrbio hepático (1).
A cirrose também pode ser causada pela ingestão de venenos (ex: tetracloreto de carbono), doenças virais (ex: hepatite infecciosa), e obstrução ou inflamação nos ductos biliares (1). Quando o fluxo sanguíneo hepato-portal é subitamente bloqueado, o retorno do sangue dos intestinos e do baço para a circulação sistêmica é severamente impedido. Isso gera hipertensão portal e eleva a pressão capilar na parede intestinal para 15-20 mmHg acima do normal, podendo levar à morte em poucas horas devido à perda excessiva de líquidos dos capilares para o lúmen e paredes intestinais (1).
Fígado como Reservatório de Sangue
O fígado é um órgão altamente expansível, capaz de armazenar grandes volumes de sangue. Seu volume normal é de aproximadamente 450 mL, o que corresponde a cerca de 10% do volume sanguíneo corporal total (1). Em condições de alta pressão no átrio direito, que causa pressão retrógrada sobre o fígado, o órgão pode expandir-se e armazenar um volume adicional de 0,5 a 1 litro de sangue (1). Esse armazenamento extra é particularmente relevante em casos de insuficiência cardíaca com congestão periférica. Assim, o fígado atua como um importante reservatório venoso expansível, capaz de armazenar sangue em situações de excesso de volume e de fornecê-lo quando o volume sanguíneo total está diminuído (1).
Fluxo Linfático
Cerca de metade de toda a linfa formada no corpo em condições de repouso provém do fígado (1).
Ascite
Ascite refere-se ao acúmulo de líquido na cavidade abdominal, resultante de elevadas pressões vasculares hepáticas que provocam a transudação de líquidos a partir dos capilares hepáticos e portais (1). Quando a pressão nas veias hepáticas se eleva 3-7 mmHg acima do normal, um volume excessivo de líquido transuda para a linfa e extravasa pela superfície externa da cápsula hepática diretamente para a cavidade abdominal (1). Pressões na veia cava de 10-15 mmHg podem aumentar o fluxo linfático hepático em até 20 vezes o normal, e o “suor” da superfície do fígado pode ser tão grande que resulta em grandes quantidades de líquido livre na cavidade abdominal (ascite) (1). O bloqueio do fluxo portal pelo fígado também eleva as pressões capilares em todo o sistema vascular portal do trato gastrointestinal, causando edema da parede intestinal e transudação de líquido para a cavidade abdominal, o que também contribui para a ascite (1).
Regulação da Massa Hepática e Regeneração
O fígado possui uma notável capacidade de se regenerar após uma perda significativa de tecido, seja por hepatectomia parcial ou por lesão aguda, desde que não haja complicação por infecção viral ou inflamatória (1). O controle dessa regeneração ainda não é completamente compreendido, mas o fator de crescimento de hepatócitos (HGF) parece ser um fator importante na divisão e crescimento celular (1). Outros fatores de crescimento, como o fator de crescimento epidérmico, e citocinas, como o fator de necrose tumoral (TNF) e a interleucina-6 (IL-6), também podem estar envolvidos na estimulação da regeneração hepática (1). Experimentos fisiológicos sugerem que o crescimento hepático é finamente regulado por um sinal desconhecido relacionado ao tamanho corporal, visando manter uma proporção ideal entre o peso corporal e o hepático para um funcionamento metabólico eficiente (1).
Sistema Macrófago Hepático
O sangue que flui pelos capilares intestinais recolhe muitas bactérias do intestino (1). As células de Kupffer, os grandes macrófagos fagocíticos que revestem os sinusoides venosos hepáticos, eficientemente limpam o sangue à medida que ele passa pelos sinusoides. Quando uma bactéria entra em contato com uma célula de Kupffer, ela é fagocitada em menos de 0,01 segundos e permanece alojada até ser digerida (1). Consequentemente, menos de 1% das bactérias que entram no sangue conseguem passar pelo fígado para a circulação sistêmica (1).
Funções Metabólicas do Fígado
O fígado desempenha um papel central em quase todos os aspectos do metabolismo corporal.
Metabolismo de Carboidratos
As funções hepáticas no metabolismo de carboidratos incluem (1):
- Armazenamento de glicogênio: Permite ao fígado remover o excesso de glicose do sangue e liberá-la quando a glicemia diminui.
- Conversão de galactose e frutose em glicose.
- Gliconeogênese: Formação de glicose a partir de precursores não carboidratos.
- Formação de produtos químicos a partir de intermediários do metabolismo de carboidratos.
O fígado é crucial na manutenção da glicemia sanguínea (1). Em indivíduos com perda da função hepática, a concentração de glicose sanguínea após uma refeição rica em carboidratos pode aumentar 2 a 3 vezes mais do que em pessoas com função normal (1). A gliconeogênese hepática é igualmente importante na manutenção da glicemia normal, convertendo grandes quantidades de aminoácidos e glicerol em glicose (1).
Metabolismo Lipídico
Embora muitas células do corpo metabolizem gordura, certos aspectos do metabolismo lipídico ocorrem predominantemente no fígado (1):
- Oxidação de ácidos graxos para suprir energia.
- Síntese de colesterol, fosfolipídios e lipoproteínas.
- Síntese de gordura a partir de proteínas e carboidratos.
Para obter energia dos lipídios, a gordura é metabolizada em glicerol e ácidos graxos. Os ácidos graxos são então clivados por β-oxidação em radicais acetil, que formam a acetil-coenzima A (Acetil-CoA). A Acetil-CoA pode entrar no ciclo do ácido cítrico para liberar grandes quantidades de energia. A β-oxidação ocorre em todas as células, mas é mais rápida nos hepatócitos (1). Cerca de 80% do colesterol sintetizado no fígado é convertido em sais biliares, secretados na bile; o restante é transportado em lipoproteínas para os tecidos (1).
Metabolismo de Proteínas
As funções hepáticas relativas ao metabolismo de proteínas incluem (1):
- Desaminação dos aminoácidos: Necessária para que os aminoácidos possam ser utilizados como energia ou convertidos em carboidratos e/ou lipídios. Uma pequena porção pode ocorrer nos rins, mas com menor relevância.
- Formação de ureia: Remove a amônia dos líquidos corporais. Grandes quantidades de amônia são formadas pela desaminação e por bactérias intestinais. A falha hepática na formação de ureia leva ao rápido aumento da amônia plasmática, resultando em coma hepático e morte (1).
- Formação de proteínas plasmáticas: Essencialmente todas as proteínas plasmáticas, exceto parte das gamaglobulinas, são formadas pelos hepatócitos, representando cerca de 90% do total (1). O fígado pode sintetizar proteínas plasmáticas a uma taxa máxima de 15-50 g/dia (1). Em doenças crônicas, como a cirrose, os níveis de proteínas plasmáticas, como a albumina, podem cair drasticamente, resultando em edema generalizado e ascite (1).
- Síntese de outros compostos a partir dos aminoácidos.
Armazenamento de Vitaminas e Minerais
O fígado é um importante local de armazenamento de vitaminas e minerais (1):
- Vitamina A: Armazenada em maior quantidade, suficiente para aproximadamente 10 meses de demanda.
- Vitamina D: Suficiente para 3-4 meses.
- Vitamina B12: Estoques podem durar vários anos.
- Ferro: A maior proporção de ferro no corpo é armazenada no fígado na forma de ferritina. Os hepatócitos contêm grande quantidade de apoferritina, uma proteína que se combina reversivelmente com o ferro. Quando há excesso de ferro, ele se liga à apoferritina formando ferritina, e é liberado quando necessário (1).
Fígado e Coagulação Sanguínea
Várias substâncias essenciais para o processo de coagulação sanguínea são formadas no fígado, incluindo fibrinogênio, protrombina, globulina aceleradora e Fator VII (1). A vitamina K é crucial nesse processo metabólico hepático; em sua ausência, as concentrações de todas essas substâncias diminuem, comprometendo a coagulação sanguínea (1).
Metabolismo de Fármacos, Hormônios e Outras Substâncias
O fígado é capaz de desintoxicar e excretar na bile diversos fármacos, como sulfonamidas, penicilina, ampicilina e eritromicina (1). De forma similar, vários hormônios secretados são quimicamente alterados ou excretados pelo fígado, incluindo tiroxina e a maioria dos hormônios esteroides, como estrogênio, cortisol e aldosterona (1). Uma lesão hepática pode levar ao acúmulo desses hormônios nos líquidos corporais, provocando hiperatividade dos sistemas hormonais (1). Além disso, uma das principais vias de excreção de cálcio do organismo é através da bile, que passa para o intestino e é eliminada nas fezes (1).
Exames Laboratoriais: Bilirrubina e Icterícia
Bilirrubina
A bilirrubina é uma substância verde-amarelada, produto final importante da degradação da hemoglobina. É um instrumento valioso para o diagnóstico de doenças hemolíticas e diversos tipos de doenças hepáticas (1).
Quando a vida útil das hemácias termina, suas membranas se rompem e a hemoglobina é liberada e fagocitada por macrófagos teciduais (sistema reticuloendotelial) (1). A hemoglobina é clivada em globina e heme. O anel do grupo heme é então aberto, liberando ferro livre (transportado pela transferrina) e uma cadeia linear de quatro núcleos pirrólicos, que é o substrato para a formação da bilirrubina (1). A primeira substância formada é a biliverdina, rapidamente reduzida a bilirrubina livre (ou bilirrubina não conjugada), que se liga imediatamente à albumina plasmática e é transportada pelo sangue e líquidos intersticiais (1).
Em questão de horas, a bilirrubina livre é absorvida pelos hepatócitos. Uma vez dentro do hepatócito, é liberada da albumina e, posteriormente, 90% é conjugada com ácido glicurônico, 10% com sulfato e 10% com outras substâncias (1). Nessas formas conjugadas, a bilirrubina é excretada dos hepatócitos para os canalículos biliares por transporte ativo, e daí para o intestino (1).
Condições Clínicas: Icterícia
Icterícia refere-se à coloração amarelada dos tecidos corporais, incluindo a pele e tecidos profundos (1). A causa usual da icterícia é a elevação da concentração de bilirrubina nos líquidos extracelulares, tanto na forma não conjugada quanto na conjugada (1). Essa elevação geralmente se deve a:
- Icterícia Hemolítica: Destruição aumentada de hemácias, com rápida liberação de bilirrubina no sangue.
- Icterícia Obstrutiva: Obstrução dos ductos biliares ou lesão das células hepáticas, impedindo a excreção normal de bilirrubina para o trato gastrointestinal.
A concentração normal de bilirrubina no plasma é de aproximadamente 0,5 mg/dL (quase inteiramente na forma não conjugada), mas pode atingir até 40 mg/dL em certas condições anormais (1). Geralmente, a pele começa a parecer ictérica quando a concentração de bilirrubina se eleva para mais de 1,5 mg/dL (cerca de 3 vezes o normal) (1).
Icterícia Obstrutiva
Causada por obstrução dos ductos biliares ou por doença hepática (1). A obstrução dos ductos biliares ocorre, por exemplo, devido a cálculos biliares ou câncer que bloqueiam o ducto biliar comum (1). A lesão dos hepatócitos, como na hepatite, resulta em produção normal de bilirrubina, mas sua passagem do sangue para o intestino é impedida (1). A bilirrubina não conjugada ainda entra nos hepatócitos e é conjugada, mas devido à ruptura dos canalículos hepáticos congestionados, a maior parte da bilirrubina plasmática é do tipo conjugado (1).
Icterícia Hemolítica
Resulta da hemólise excessiva de hemácias (1). Nesta icterícia, a função excretora do fígado não está comprometida, mas a hemólise ocorre tão rapidamente que os hepatócitos não conseguem excretar a bilirrubina na mesma velocidade em que é produzida (1).
Diagnóstico Diferencial
Para diferenciar entre os tipos de icterícia (1):
- Na icterícia hemolítica, quase toda a bilirrubina está na forma não conjugada.
- Na icterícia obstrutiva, a bilirrubina é principalmente da forma conjugada.
O teste conhecido como “reação de van den Bergh” pode ser empregado para diferenciar entre essas duas condições (1). Em casos de icterícia obstrutiva grave, uma quantidade significativa de bilirrubina conjugada aparece na urina, o que pode ser facilmente demonstrado pela agitação da urina, que produzirá uma espuma intensamente amarela (1).
Referências Bibliográficas
- HALL, J. E.; GUYTON, A. C. Tratado de Fisiologia Médica. 13. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2017. p. 1–1176.