Epistemologia Genética e Desenvolvimento Cognitivo e Moral em Piaget
Introdução
A teoria construtivista de Jean Piaget postula que o desenvolvimento humano é um processo adaptativo contínuo, mediado pela interação entre assimilação e acomodação. Este processo se manifesta através de estágios sucessivos de organização cognitiva e afetiva, resultando na formação, modificação e reconstrução de esquemas mentais ao longo do ciclo vital.
O Processo de Adaptação: Assimilação e Acomodação
O desenvolvimento cognitivo, segundo Piaget, é impulsionado por um processo de adaptação, que envolve dois mecanismos complementares: a assimilação e a acomodação. Quando um indivíduo interage com um novo objeto ou informação, ele inicialmente tenta assimilá-lo, ou seja, interpretá-lo e incorporá-lo em esquemas cognitivos já existentes. Se o objeto ou informação não se encaixa nos esquemas preexistentes, ocorre a acomodação, que implica na modificação desses esquemas ou na criação de novos, a fim de incorporar a nova experiência. Esse processo dinâmico de assimilação e acomodação permite a expansão e o aprimoramento do conhecimento.
Estágios do Desenvolvimento Cognitivo
Piaget descreveu o desenvolvimento humano através de fases ou estágios sucessivos e graduais de organização do campo cognitivo e afetivo. Em cada estágio, os esquemas são formados, modificados ou reconstruídos em períodos etários específicos.
Estágio Sensório-Motor (0 a 2 anos)
Neste estágio, o bebê explora o mundo por meio de sensações e movimentos. O contato inicial com o ambiente é mediado por reflexos sensoriais e comportamentos típicos da espécie, evoluindo para a aquisição da fala. Contudo, nesta fase, ainda não há representação mental ou pensamento conceitual. O período é marcado por um contínuo aperfeiçoamento das capacidades sensoriais e motoras, culminando, por volta dos 2 anos, com a capacidade de locomoção, reconhecimento facial, expressão de afetos e emissão das primeiras palavras.
Estágio Pré-Operatório (2 a 7 anos)
Caracteriza-se pelo desenvolvimento da linguagem, que promove a socialização e o surgimento do pensamento representacional. Embora a criança vá além das informações sensoriais, seu pensamento ainda não é totalmente lógico, sendo marcado por egocentrismo, que se manifesta como a incapacidade de adotar a perspectiva alheia, incoerência (contradição de argumentos) e irreversibilidade (incapacidade de considerar simultaneamente o estado inicial e final de uma transformação). A criança possui uma percepção global dos objetos, sem discriminar detalhes, e entra na “fase dos porquês”, demonstrando um desejo de compreender o funcionamento das coisas.
Estágio Operatório Concreto (7 a 11 anos)
Nesta fase, a capacidade cognitiva alcança o raciocínio lógico, aplicado a problemas reais. Há uma diminuição do egocentrismo e um aumento da argumentação coerente, objetividade, conservação e reversibilidade. A criança é capaz de realizar operações ou tarefas, mas estas estão intrinsecamente ligadas a objetos concretos e reais, pois a capacidade de abstração ainda não está plenamente desenvolvida.
Estágio Operatório Formal (12 anos em diante)
Este estágio é caracterizado pelo desenvolvimento do raciocínio dedutivo, permitindo a formulação de hipóteses e a explicação de eventos com base em fatos observáveis. A capacidade de abstração é desenvolvida, possibilitando ao indivíduo refletir sobre pensamentos e sentimentos próprios e alheios, além de buscar soluções independentemente da observação direta da realidade. Nesta fase, ocorre a transição do pensamento concreto para o abstrato, desenvolvendo-se a capacidade de generalização típica do pensamento adulto e a habilidade de lidar com conceitos abstratos como justiça e liberdade.
Desenvolvimento da Consciência Moral
Ao longo do desenvolvimento cognitivo, Piaget aborda a consciência moral não como algo inato, mas como um produto das relações interindividuais, que se manifestam através da coação e da cooperação, estabelecendo três etapas distintas.
Coação
Nos relacionamentos baseados em coação, o nível de socialização é baixo e as interações são predominantemente impositivas, visto que a opinião da criança é desconsiderada ou inexistente. Este tipo de interação não promove a reflexão, impossibilitando a construção do raciocínio. O respeito é unilateral, dada a assimetria da relação. Piaget afirma que a coação é natural e necessária nos primeiros anos de vida, mas alerta que a sua persistência pode inibir o desenvolvimento cognitivo e da inteligência. O autor também sugere que algumas tradições, quando seguidas sem reflexão crítica, podem ser configuradas como coação.
Cooperação
Em contraste, nos relacionamentos baseados em cooperação, há um alto nível de socialização e trocas significativas, onde todos os indivíduos podem se expressar e contribuir na comunicação. Isso permite um controle mútuo de argumentos, que auxilia no desenvolvimento de habilidades intelectuais. A busca pela compreensão mútua e o comprometimento em não se contradizer, diante de diversos pontos de vista, são características da cooperação. O respeito, neste contexto, é bilateral, devido à simetria da relação.
Etapas do Desenvolvimento Moral
Anomia (0 a 6 anos)
Nesta etapa, a criança busca primordialmente a satisfação de suas próprias necessidades e interesses. Caracteriza-se pela ausência de compreensão e capacidade de se reger por regras e normas. A relação interindividual predominante é a coação, onde a interação é unilateral (“eu falo e você ouve” ou “eu mando e você obedece”).
Heteronomia (6 a 10 anos)
A criança demonstra interesse por atividades coletivas, e a participação nestas atividades exige a aceitação de regras impostas coercitivamente por superiores. A criança obedece e começa a compreender essas regras, mas exibe uma inflexibilidade, considerando-as imutáveis, pois não as concebe como criações humanas. Ela não se vê como potencial criadora de regras. Nesta fase, o dever determina o bem, e o que é bom é aquilo que está em conformidade com as regras.
Autonomia (10 anos em diante)
Poucos indivíduos alcançam este estágio, no qual a pessoa é capaz de formular as próprias regras. O respeito pelas regras é compreendido como decorrente de um acordo mútuo entre as pessoas, onde cada indivíduo se reconhece como possível legislador, ou seja, criador de regras que serão submetidas à apreciação e aceitação dos outros. O adulto “imunizado socialmente” piagetiano é aquele que pode discordar do consenso social, desde que essa discordância seja fruto de atividade reflexiva e não apenas de uma rejeição revoltada. Ele utiliza a razão para analisar os fatos e tomar suas próprias decisões, seguindo ou não determinadas ordens ou tradições. Aqui, o bem determina o dever, e a regra deve estar em conformidade com o que é bom.
Referências Bibliográficas:
- PAPALIA, Diane E.; MARTORELL, Gabriela. Desenvolvimento Humano. 14. ed. Porto Alegre: Artmed, 2022. v. 1.