A Teoria dos Constructos Pessoais de George Kelly: Compreendendo a Personalidade Humana


A Teoria dos Constructos Pessoais de George Kelly: Compreendendo a Personalidade Humana


Introdução

George Kelly propôs uma teoria da personalidade revolucionária que compara o ser humano a um cientista. Segundo Kelly, cada indivíduo constrói um conjunto singular de constructos cognitivos sobre seu ambiente. Através desses constructos, interpretamos e organizamos os eventos e as relações sociais, formando padrões que nos permitem fazer previsões sobre nós mesmos, os outros e o mundo. Essas previsões, por sua vez, orientam nossas respostas e ações, tornando nossa interpretação dos eventos mais significativa do que os eventos em si. A teoria dos constructos pessoais de Kelly busca compreender a personalidade analisando esses padrões individuais de construção da realidade.


A Teoria de George Kelly

Kelly sugere que as pessoas percebem e organizam o mundo de suas experiências de maneira análoga aos cientistas: formulando hipóteses sobre o ambiente e testando-as na realidade da vida diária (1). Observamos os eventos da vida (fatos ou dados de nossa experiência) e os interpretamos à nossa maneira (1). Ele afirmava que “olhamos o mundo mediante padrões transparentes que se adaptam às realidades de que o mundo é composto” (1). Por essa razão, múltiplas pessoas podem testemunhar a mesma cena, mas a perceberão de formas diferentes, dependendo das nuances das “lentes” que estruturam seus pontos de vista (1).

A Vida como um Constructo

Um constructo é a maneira singular de um indivíduo ver a vida, uma hipótese intelectual elaborada para explicar e interpretar os eventos (1). Comportamo-nos com a expectativa de que nossos constructos prevejam e expliquem a realidade de nosso mundo e, assim como os cientistas, estamos constantemente testando essas hipóteses (1).

Alternativismo Construtivo

Desenvolvemos numerosos constructos ao longo da vida, um para quase cada tipo de pessoa ou situação que encontramos, e expandimos nossa lista de constructos à medida que novas experiências surgem (1). Adicionalmente, podemos alterar ou descartar constructos periodicamente conforme as situações mudam (1). Se nossos constructos fossem inflexíveis e impossíveis de serem revistos – o que ocorreria se a personalidade fosse totalmente determinada pelas influências da infância – seríamos incapazes de lidar com novas situações (1). Essa capacidade de adaptação e revisão é o que Kelly denominou alternativismo construtivo (1).


Modos de Antecipar os Eventos da Vida

A teoria de Kelly é estruturada em um postulado fundamental e 11 corolários (adendos) (1). O postulado fundamental estabelece que nossos processos psicológicos são dirigidos pelas maneiras como antecipamos os eventos (1). Ao utilizar a palavra “processos”, Kelly sugere que a personalidade é um fenômeno fluido e em constante movimento (1). Além disso, a noção de constructos de Kelly é intrinsecamente antecipatória: utilizamos os constructos para prever o futuro, obter uma ideia das consequências de nossas ações e antecipar o que provavelmente acontecerá se nos comportarmos de determinada maneira (1).

Adendos (Corolários) da Teoria de Kelly

  1. Construção: Kelly acreditava que nenhum evento ou experiência pode ser reproduzido exatamente da mesma maneira (1). No entanto, embora não sejam idênticos, eventos passados e futuros apresentam características e temas recorrentes (1). É com base nessas semelhanças que fazemos previsões ou antecipações sobre como lidaremos com eventos futuros (1).
  2. Individualidade: As pessoas diferem entre si no modo como percebem ou interpretam um evento, formando constructos distintos (1). Nossos constructos refletem mais nossa interpretação singular do que a realidade objetiva de um evento (1).
  3. Organização: Nossos constructos individuais são organizados em um padrão com base em suas semelhanças e diferenças (1). Pessoas com constructos semelhantes ainda podem diferir se os organizarem de padrões distintos (1). Geralmente, organizamos os constructos em uma hierarquia, com alguns subordinados a outros (ex: “pessoa boa” pode ter “inteligente” e “moral” como subordinados) (1). Se essa organização falhar em prever eventos de forma útil, ela é modificada (1).
  4. Dicotomia: Todos os constructos são bipolares ou dicotômicos, ou seja, são compostos por duas alternativas mutuamente excludentes (1). Para definir algo como “honesto”, é preciso considerar seu oposto, “desonesto” (1).
  5. Escolha: Em cada situação, escolhemos a alternativa que nos parece melhor, aquela que nos permite antecipar ou prever o resultado de eventos futuros (1). Kelly sugeriu que há uma margem para decidir entre segurança e aventura (1). A escolha segura repete experiências, limitando o sistema de constructos; a arriscada expande-o através de novos eventos (1). A tendência de escolher alternativas de baixo risco pode explicar comportamentos não gratificantes (1). Nossas escolhas são baseadas em quão bem nos permitem antecipar eventos, não necessariamente no que é “melhor” para nós (1).
  6. Extensão: Alguns constructos podem ser aplicados a muitas situações ou pessoas, enquanto outros são mais limitados (1). A extensão de conveniência de um constructo é uma opção pessoal (1). Para compreender a personalidade, é vital saber o que está excluído e o que está incluído na extensão de conveniência de um constructo (1).
  7. Experiência: Diariamente somos expostos a novas experiências, testando a adequação de um constructo (1). Se um constructo falhar em predizer resultados, ele precisa ser reformulado ou substituído (1). Constructos válidos aos 16 anos podem ser inúteis ou danosos aos 40 (1).
  8. Modulação: Um constructo permeável permite que novos elementos sejam admitidos em seu âmbito de conveniência (1). É aberto a novas experiências e pode ser revisto ou expandido por elas (1). A capacidade de modulação do sistema de constructos depende da permeabilidade dos constructos individuais (1). Por exemplo, uma pessoa preconceituosa não modificará seu constructo, mesmo que conheça pessoas inteligentes do grupo em questão, tornando o constructo uma barreira ao aprendizado (1).
  9. Fragmentação: Kelly acreditava que constructos incompatíveis podem coexistir dentro do padrão geral de uma pessoa (1). Um constructo pode ser consistente com outro em uma situação, mas inconsistente em outra (1). Por exemplo, alguém pode ser considerado amigo em uma situação e inimigo em outra, mas o constructo mais amplo de amizade permanece (1). Esse processo permite tolerar incoerências subordinadas sem danificar o sistema de constructos (1).
  10. Comunidade: Se várias pessoas interpretam uma experiência de forma similar, seus processos cognitivos são semelhantes (1). Pessoas da mesma cultura tendem a apresentar semelhanças de comportamento e características, mesmo com diferentes experiências de vida (1).
  11. Sociabilidade: Não basta que uma pessoa interprete suas experiências de forma similar a outra; ela também precisa interpretar os constructos da outra (1). Para antecipar o comportamento alheio (motoristas, amigos, chefes), é necessário entender como a outra pessoa pensa (1). Isso nos permite ajustar nosso próprio comportamento e assumir diferentes papéis sociais (1).

Questões sobre a Natureza Humana

Kelly concebia os seres humanos como racionais, capazes de formar uma estrutura de constructos para interpretar o mundo (1). Acreditava que somos autores, e não vítimas, de nosso destino, dotados de livre-arbítrio para escolher a direção de nossa vida e a capacidade de mudar, revendo e formando novos constructos (1).

Kelly rejeitava o determinismo histórico, não considerando que eventos passados determinam o comportamento presente (1). Não somos prisioneiros de experiências infantis (treino de uso do banheiro, experiências sexuais, rejeição parental) nem limitados por instintos biológicos ou forças inconscientes (1).


Pesquisa na Teoria de Kelly

O Teste de Repertório do Constructo de Papel (REP Teste) foi desenvolvido para avaliar os constructos pessoais de um indivíduo (1). Estudos utilizando o REP Teste mostraram que os constructos de uma pessoa se mantêm estáveis ao longo do tempo (1). Contudo, a validade do REP Teste depende fortemente da habilidade do psicólogo em interpretar os resultados (1).

Complexidade e Simplicidade Cognitiva

Uma das consequências do trabalho de Kelly são os estilos cognitivos, que se referem às diferenças na forma como interpretamos pessoas, objetos e situações (1).

  • Complexidade Cognitiva: Definida como a habilidade de discriminar a aplicação pessoal de constructos da aplicação de outras pessoas (1). Indivíduos com alta complexidade cognitiva conseguem enxergar variações e categorizar pessoas em múltiplas categorias (1).
  • Simplicidade Cognitiva: Refere-se à menor capacidade de enxergar diferenças ao julgar outras pessoas, percebendo pouca variedade (1).

Efeitos sobre Personalidade e Comportamento

Pessoas com alta complexidade cognitiva são mais capazes de fazer previsões sobre o comportamento de outros, reconhecem as diferenças entre si e os outros, demonstram mais empatia e lidam melhor com informações inconsistentes na interpretação de outros (1). Um estudo mostrou que indivíduos com alta complexidade cognitiva apresentavam níveis mais baixos de ansiedade e instabilidade, adaptavam-se melhor aos estresses da vida universitária e tendiam a possuir mais do que os tradicionais Cinco Fatores de Personalidade (1). Por outro lado, aqueles com baixa complexidade cognitiva exibiam menos de cinco fatores de personalidade, sugerindo menor complexidade emocional (1). Na teoria de Kelly, a complexidade cognitiva é o estilo cognitivo mais desejável e útil, tornando as pessoas mais bem-sucedidas na tarefa de antecipar eventos (1).

Mudanças ao Longo do Tempo

Estudos indicam que a complexidade cognitiva aumenta com a idade (1). Adultos com elevada complexidade cognitiva geralmente tiveram experiências infantis mais diversificadas, e seus pais eram menos autoritários e concediam maior autonomia em comparação aos pais de adultos com alta simplicidade cognitiva (1).

Semelhança entre Companheiros

Pesquisadores sugeriram que companheiros podem se escolher por semelhanças preexistentes nos níveis de complexidade cognitiva, ou desenvolver essa semelhança ao longo do tempo por viverem juntos (1). De qualquer forma, tendem a construir seus mundos de maneira similar (1).

Complexidade Atribucional

Uma variante da complexidade cognitiva é a complexidade atribucional, definida como o grau em que uma pessoa prefere explicações mais complexas para o comportamento social em vez de explicações simples (1). Indivíduos com alto grau de complexidade atribucional demonstram maior sensibilidade e discernimento para sinais sutis de racismo (1).


Referências Bibliográficas

  1. SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. Teorias da Personalidade. 4. ed. CENGAGE, 2021.