Niacina (Vitamina B3): Funções, Metabolismo e Implicações Clínicas
Introdução
A niacina, embora convencionalmente conhecida como vitamina B3, é um termo genérico que abrange duas formas biologicamente ativas: ácido nicotínico e nicotinamida (2). Essencial para inúmeras reações metabólicas no organismo humano, a niacina é precursora de importantes coenzimas, desempenhando papéis cruciais na produção de energia, defesa oxidativa e integridade do DNA.
Recomendações Nutricionais e Fontes Alimentares
As Recomendações de Ingestão Dietética (RDA) para a niacina são (2):
- Homens adultos: 16 mg/dia.
- Mulheres adultas: 14 mg/dia.
- Gestantes: 18 mg/dia.
- Lactantes: 17 mg/dia.
O UL para todos os adultos é de 35 mg, a menos que administrado sob supervisão médica. (4)
A niacina pode ser obtida tanto pela via dietética quanto pela conversão de triptofano (Trp), onde aproximadamente 2% do Trp é convertido em niacina (2). Em condições normais, a síntese endógena de niacina a partir do triptofano é geralmente suficiente para suprir as necessidades da vitamina (2).
As principais fontes alimentares de niacina incluem (2):
- Carnes em geral, especialmente carnes vermelhas.
- Peixes.
- Legumes.
- Leite e derivados.
- Ovos.
- Grãos de cereais.
- Amendoim, semente de girassol, cogumelos, pão branco, amêndoas, ameixa, abacate, semente de abóbora, arroz.
Para a prevenção da pelagra, são necessários pelo menos 11-13 equivalentes de niacina por dia (niacina + triptofano) (2).
Absorção, Biodisponibilidade e Metabolismo
Nos alimentos, a nicotinamida é a forma de niacina predominantemente absorvida (2). Em tecidos animais, a hidrólise pós-morte do NADP (nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato) é rápida, sugerindo que a maior parte da niacina na carne está na forma de nicotinamida livre. Caso contrário, enzimas presentes na mucosa intestinal realizam essa hidrólise (2).
Em fontes vegetais, a niacina está presente como ácido nicotínico, que tende a ser convertido em NAD (nicotinamida adenina dinucleotídeo) no intestino ou fígado e, posteriormente, em nicotinamida pela ação da enzima NAD glicohidrolase, para então ser distribuída aos tecidos (2). Em cereais, a niacina pode estar em uma forma pouco biodisponível, esterificada (niacitina) (2).
A niacina é absorvida tanto no estômago quanto no intestino delgado, mas em maior proporção no intestino delgado (2, 3). Quando presente no lúmen intestinal como NAD e NADP, não é absorvida diretamente, necessitando ser hidrolisada a nicotinamida livre (2). Diversos transportadores estão envolvidos na captação da niacina pelos enterócitos, com o transportador 3-aniônico orgânico humano (hOAT-3) sendo o mais reconhecido para o transporte de concentrações fisiológicas da vitamina (2).
Tanto o ácido nicotínico quanto a nicotinamida circulam livremente no sangue e são transportados para os tecidos, onde são convertidos em NAD e NADP. Essa conversão é regulada pela concentração extracelular de nicotinamida (2).
Status da Vitamina e Métodos de Avaliação
Atualmente, o método mais utilizado para avaliar o estado nutricional de niacina baseia-se na medida da excreção urinária de N1-metilnicotinamida (2). A N-metil-2-piridona-5-carboxamida, outro metabólito urinário, diminui rapidamente em indivíduos com deficiência de niacina, cessando por várias semanas antes do aparecimento dos sinais clínicos da deficiência (2).
Valores de N1-metilnicotinamida < 1,3 µmol/mmol de creatinina e de N-metil-2-piridona-5-carboxamida < 3,0 µmol/mmol de creatinina são indicativos de deficiência de niacina (2).
Funções no Organismo
O papel fundamental da niacina é atuar como fonte de nicotinamida para a formação das coenzimas nicotinamida adenina dinucleotídeo (NAD) e NADP (2). Essas coenzimas também podem ser sintetizadas in vivo a partir do aminoácido essencial triptofano (Trp) na proporção de 60:1 (2).
NAD e NADP são carreadores universais de elétrons, participando de inúmeras reações de oxidação e redução em diversas vias metabólicas (2). O NAD está envolvido em aproximadamente 400 reações catabólicas, como glicólise e ciclo de Krebs, e na oxidação do etanol (2). Nesse processo, a energia liberada pela oxidação de substratos é conservada por esses carreadores, que subsequentemente doam elétrons em reações anabólicas (2). O NADP participa em cerca de 30 reações, incluindo a defesa oxidativa e o metabolismo endobiótico e xenobiótico do citocromo P450 (2).
Além de seu papel no metabolismo energético, a niacina também atua na replicação, reparo e diferenciação de moléculas de DNA (2).
Deficiência de Niacina: Pelagra e Outras Condições
Avaliando a dieta brasileira em relação à niacina e ao triptofano, a deficiência parece improvável (2).
Pelagra
Embora classicamente associada à deficiência de niacina, a pelagra deve ser considerada como decorrente da deficiência de ambos os nutrientes: niacina e triptofano (2). A pelagra é caracterizada pela tríade de sintomas, com as “3 Ds”:
- Dermatite fotossensível: Manifesta-se como uma queimadura solar grave, com um padrão de distribuição típico, como uma “borboleta” na face, afetando todas as áreas expostas à luz solar (2). Lesões cutâneas similares podem ocorrer em áreas de pressão (joelhos, cotovelos, pulsos e tornozelos) (2). A explicação bioquímica da dermatite fotossensível ainda não é totalmente clara (2). A única anormalidade bioquímica relatada na pele desses pacientes é o aumento do catabolismo da histidina, levando à redução na concentração de ácido urocânico, o principal composto que absorve raios UV na pele normal (2).
- Demência (ou mais precisamente, depressão psicótica): A pelagra avançada pode ser acompanhada de demência, clinicamente distinguível por fases lúcidas repentinas alternadas com sinais psiquiátricos mais evidentes (2).
- Diarreia (2).
Além da baixa ingestão de niacina e triptofano, a deficiência de outros nutrientes como riboflavina, vitamina B6, zinco e ferro pode contribuir para o surgimento da pelagra, pois são cofatores de enzimas envolvidas no metabolismo do triptofano pela via das quinureninas (2).
A pelagra ainda é “comum” em alcoolistas devido à diminuição da absorção intestinal e ingestão alimentar inadequada (2). Em pacientes com HIV, especialmente aqueles com episódios frequentes de diarreia, é importante estar atento, pois alguns autores encontraram menor excreção urinária de N1-metilnicotinamida nesse grupo, indicativo de deficiência de niacina (2). A ausência de patógenos intestinais e anormalidades morfológicas em casos de diarreia pode sugerir associação com a deficiência de niacina (2).
Outras condições que aumentam o risco para a deficiência de niacina incluem anorexia nervosa, câncer, quimioterapia e distúrbios gastrointestinais como a Doença de Crohn (2).
Suplementação e Toxicidade
Para o tratamento da pelagra, doses de 15-20 mg/dia de ácido nicotínico ou 300 mg de nicotinamida são eficazes (2).
A tiamina, sendo hidrossolúvel, tem seu excesso excretado na urina, e não há evidências de toxicidade da tiamina oral (2). No entanto, doses parenterais têm sido associadas a depressão respiratória em animais e choque anafilático em humanos (2). Efeitos colaterais podem incluir irritabilidade, insônia, taquicardia e fraqueza (2).
O UL para todos os adultos é de 35 mg, a menos que administrado sob supervisão médica. Doses de 30 a 50 mg de ácido nicotínico podem causar rubor cutâneo, queimação, formigamento e coceira devido à vasodilatação. (4)
O NOAEL (No Observed Adverse Effect Level) para o ácido nicotínico é de 500 mg (250 mg de liberação lenta) e de 1500 mg para nicotinamida (2). O LOAEL (Lowest Observed Adverse Effect Level) é de 1000 mg (500 mg de liberação lenta) para o ácido nicotínico e de 3000 mg para a nicotinamida (2).
Implicações Clínicas Específicas
Dislipidemia
O ácido nicotínico é utilizado como agente hipolipemiante em altas doses (1-3 g/dia) (2). Esse efeito se deve à sua capacidade de inibir a mobilização e lipólise de ácidos graxos livres (AGL), reduzir a síntese hepática de triglicerídeos e a secreção de VLDL (lipoproteína de muito baixa densidade), inibir a conversão de VLDL em LDL, aumentar a concentração de HDL (lipoproteína de alta densidade) e aumentar as concentrações de apolipoproteína A1 (2).
Contudo, diversos estudos não encontraram redução do risco de ataque cardíaco ou infarto com o uso prolongado de niacina (2). Na Europa, não há medicamentos com ácido nicotínico autorizados (2). As diretrizes do American College of Cardiology e da American Heart Association (2018/2019) nos Estados Unidos também não incluem a niacina como opção de tratamento para a redução do LDL-c (2). Seu uso farmacológico deve ser feito com prudência e sob monitoração clínica cuidadosa (2). O ácido nicotínico em doses moderadas causa vasodilatação marcante, com enrubescimento, queimação e e coceira na pele (2). Em doses muito elevadas, pode causar hipotensão (2).
Diabetes
Alguns estudos demonstraram um modesto aumento da glicemia de jejum associado ao uso de niacina (2). Duas possíveis causas são discutidas (2):
- Aumento nas concentrações de AGL fora do tecido adiposo, que estaria ligado à resistência à insulina no tecido muscular.
- A estimulação de receptores acoplados à proteína G (GPR109a) mediada pela niacina aumentaria a captação de glicose pelas células intestinais, contribuindo diretamente para alterações nas concentrações glicêmicas.
Nesse sentido, as diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes (2017-2018) e da American Diabetes Association (2019) não recomendam a utilização de ácido nicotínico para a redução do risco cardiovascular e tratamento da dislipidemia em pacientes com diabetes (2).
Doença Renal Crônica (DRC)
Estudos experimentais em animais investigaram a ação da niacina na DRC. A administração de longo prazo demonstrou uma melhora na hipertensão, na proteinúria, no estresse oxidativo e suprimiu mediadores inflamatórios em ratos submetidos a nefrectomia parcial (2). Uma revisão sugere que, além dos benefícios no controle dos lipídios séricos, a niacina teria um impacto favorável no declínio da taxa de filtração glomerular, agindo sobre o estresse oxidativo, a inflamação e a função endotelial, bem como na redução das concentrações de fósforo sérico pela diminuição da absorção intestinal do fósforo dietético (2).
Desempenho esportivo:
A niacina (B3) em doses elevadas (280 mg) pode reduzir a capacidade de exercício e embotar a mobilização de ácidos graxos. (4)
Referências Bibliográficas
- LANCHA JR, A. H.; ROGERI, P. S.; PEREIRA-LANCHA, L. O. Suplementação Nutricional no Esporte. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019. 266 p.
- COZZOLINO, S. Biodisponibilidade de Nutrientes. 6. ed. São Paulo: Manole, 2020. 934 p.
- JEUKENDRUP, A. E.; GLEESON, M. Nutrição no Esporte – Diretrizes Nutricionais e Bioquímica e Fisiologia do Exercício. 3. ed. São Paulo: Manole, 2021. 559 p.
- JAGIM, A. R. et al. International Society of Sports Nutrition position stand: energy drinks and energy shots. Journal of the International Society of Sports Nutrition, v. 20, n. 1, p. 2171314, 2023.