Adaptações Fisiológicas ao Treinamento Físico: Princípios e Mecanismos
Introdução
O treinamento físico visa primordialmente estimular adaptações estruturais e funcionais no organismo, com o intuito de aprimorar o desempenho em tarefas físicas específicas. A abordagem fundamental ao condicionamento fisiológico é aplicável a ambos os sexos e a uma ampla faixa etária, uma vez que homens e mulheres respondem e se adaptam ao treinamento de maneiras essencialmente similares (1).
Princípios Fundamentais do Treinamento Físico
A eficácia do treinamento físico reside na aplicação sistemática de princípios que guiam a adaptação fisiológica do corpo.
Princípio da Sobrecarga
O exercício realizado com intensidades superiores aos níveis habituais estimula adaptações altamente específicas, capacitando o corpo a funcionar com maior eficiência (1). Para alcançar a sobrecarga apropriada, é necessário manipular a frequência, a intensidade e a duração do treinamento, ou uma combinação desses três fatores (1). O conceito de sobrecarga individualizada e progressiva é aplicável a diversos grupos, incluindo atletas, indivíduos sedentários, pessoas com incapacidades e até mesmo cardiopatas (1).
Princípio da Especificidade
A especificidade refere-se às adaptações nas funções metabólicas e fisiológicas que são determinadas pela intensidade, duração, frequência e modalidade da sobrecarga imposta (1). Uma sobrecarga específica de curta duração induz adaptações específicas de força-potência, enquanto o treinamento de endurance específico promove adaptações específicas do sistema aeróbio, com uma inter-relação limitada de benefícios entre o treinamento de força-potência e o treinamento aeróbio (1).
A especificidade vai além: o treinamento aeróbio, por exemplo, não é uma entidade singular que requer apenas sobrecarga cardiovascular. O treinamento aeróbio que se baseia na musculatura específica exigida para o desempenho desejado aprimora de maneira mais eficaz a aptidão aeróbia para modalidades específicas (1). Algumas evidências sugerem inclusive uma especificidade temporal na resposta ao treinamento, de modo que os indicadores de aprimoramento do treinamento atingem um valor máximo quando medidos no horário do dia em que o treino é usualmente realizado (1).
Nesse sentido, a avaliação mais efetiva do desempenho esporte-específico ocorre quando a mensuração laboratorial simula mais fielmente a atividade esportiva e/ou utiliza a massa muscular exigida pelo esporte (1). Em síntese, o exercício específico desencadeia adaptações específicas destinadas a promover efeitos específicos do treinamento que resultam em melhorias específicas no desempenho (1). A especificidade é, portanto, o princípio das adaptações específicas às demandas impostas (AEDI) (1). Diversos achados indicam que o treinamento específico para atividades aeróbias deve proporcionar um nível geral apropriado de estresse cardiovascular e sobrecarga de músculos específicos de modo específico demandado pela atividade (1).
Especificidade do VO2max
Ao treinar para atividades aeróbias específicas, a sobrecarga deve atender a dois objetivos primordiais (1):
- Solicitar os músculos apropriados exigidos pela atividade.
- Proporcionar intensidade em nível suficiente para sobrecarregar o sistema cardiovascular.
Observa-se pouca melhora ao medir a capacidade aeróbia com uma atividade física diferente; a máxima melhora ocorre quando o exercício do teste reproduz o treinamento (1). Embora o treinamento com exercícios aeróbios induza uma melhora altamente específica no VO2max, melhorias mais generalizadas são observadas na função cardíaca (1). A contratilidade ventricular, por exemplo, que melhora com determinada modalidade de treinamento físico, também se aprimora em exercícios dos membros não treinados. Aparentemente, os indivíduos conseguem treinar o miocárdio propriamente dito com diversas modalidades de atividades realizadas com “grandes grupos musculares” (1).
Especificidades das Alterações Locais
Adaptações metabólicas locais promovem um aumento na capacidade dos músculos estriados esqueléticos treinados de gerar ATP aerobicamente antes do início do acúmulo de lactato (1). A especificidade da melhora aeróbia também pode resultar de um maior fluxo sanguíneo regional nos tecidos ativos, em virtude de três fatores:
- Aumento da microcirculação (1).
- Distribuição mais efetiva do débito cardíaco (1).
- Efeito combinado de ambos os fatores (1).
Independentemente do mecanismo, essas adaptações ocorrem somente nos músculos especificamente treinados e se tornam evidentes apenas no exercício que ativa essa musculatura (1).
Princípio das Diferenças Individuais
Nem todos os indivíduos respondem de maneira idêntica a um determinado estímulo de treinamento (1). Por exemplo, observou-se que indivíduos com menor aptidão inicial demonstram as maiores melhoras alcançadas com o treinamento (1). Não se pode esperar que, em um grupo de pessoas, cada indivíduo atinja o mesmo estado de aptidão ou desempenho nos exercícios após apenas 10 ou 12 semanas (1). Os benefícios ótimos do treinamento ocorrem quando os programas de exercícios se concentram nas necessidades individuais e nas capacidades dos participantes (1).
Princípio da Reversibilidade
A perda de adaptações fisiológicas e de desempenho é denominada destreinamento, e ocorre rapidamente quando uma pessoa cessa sua participação em atividade física regular. Apenas uma ou duas semanas de destreinamento resultam em redução na capacidade metabólica e de realização do exercício (1). Foi observado, por exemplo, que em indivíduos idosos, quatro meses de destreinamento anulavam completamente as adaptações induzidas pelo treinamento de endurance sobre as funções cardiovasculares e a distribuição da água corporal (1). Em atletas altamente treinados, mesmo os efeitos benéficos de muitos anos de treinamento físico prévio continuam sendo transitórios e reversíveis (1).
Alterações Fisiológicas Induzidas pelo Treinamento
O treinamento físico induz uma série de adaptações nos sistemas energéticos, metabólicos e cardiovasculares do organismo.
Alterações no Sistema Anaeróbio
Atividades que demandam um alto nível de metabolismo anaeróbio produzem alterações específicas no sistema de energia imediato e de curto prazo, com pequenos aumentos concomitantes nas funções aeróbias (1). Ocorrem três alterações importantes com o treinamento de potência anaeróbia:
- Maiores níveis de substratos anaeróbios: Estudos demonstram aumentos nos níveis de repouso de ATP, PCr, creatina livre e glicogênio no músculo treinado, acompanhados por uma melhora de 28% na força muscular (1).
- Maior quantidade e atividade das enzimas-chave que controlam a fase anaeróbia (glicolítica) do catabolismo da glicose: Observou-se que os aumentos mais expressivos na função das enzimas anaeróbias e no tamanho das fibras musculares ocorrem nas fibras de contração rápida (1).
- Maior capacidade de gerar e tolerar altos níveis de lactato sanguíneo durante o esforço explosivo: Essa adaptação provavelmente resulta de (A) maiores níveis de glicogênio e de enzimas glicolíticas e (B) melhor motivação e tolerância à dor na atividade física exaustiva (1).
Alterações no Sistema Aeróbio
Com um treinamento adequado, observam-se adaptações positivas em muitos fatores relacionados ao uso de oxigênio, como ventilação-aeração, fluxo sanguíneo central, metabolismo dos músculos ativos e fluxo sanguíneo periférico, entre outros (1).
Adaptações Metabólicas
O treinamento aeróbio produz melhorias na capacidade de controle respiratório no músculo esquelético (1).
Maquinário Metabólico
Até certo ponto, é o potencial das mitocôndrias, e não o suprimento de oxigênio, que limita a capacidade oxidativa do músculo não treinado (1). Fibras de músculos estriados esqueléticos treinados em endurance contêm mitocôndrias maiores e mais numerosas do que as fibras menos ativas (1). O mecanismo estrutural ampliado das mitocôndrias e as adaptações na atividade enzimática observadas com o treinamento aeróbio, por exemplo, um aumento de 50% em algumas semanas, resultam em um grande aumento na capacidade das mitocôndrias musculares subsarcolemais e intermiofibrilares de gerar ATP aerobicamente (1). É importante ressaltar que as alterações enzimáticas ocorrem em virtude dos aumentos no material mitocondrial total, não de maior atividade enzimática por unidade de proteína mitocondrial (1).
Metabolismo das Gorduras
O treinamento de endurance aumenta a oxidação dos ácidos graxos para a obtenção de energia durante o repouso e o exercício submáximo (em particular à medida que a duração do esforço se estende) (1). Quatro fatores contribuem para o grande aumento da lipólise induzida pelo treinamento:
- Maior fluxo sanguíneo no músculo treinado (1).
- Mais enzimas para a mobilização e o metabolismo das gorduras (1).
- Capacidade respiratória aprimorada das mitocôndrias musculares (1).
- Menor liberação de catecolaminas para a mesma produção absoluta de potência (1).
Metabolismo dos Carboidratos
O músculo treinado exibe maior capacidade de oxidar os carboidratos durante o exercício máximo (1). A redução da utilização de carboidratos como fonte energética e a maior combustão de ácidos graxos na atividade física submáxima com o treinamento de endurance resultam dos efeitos combinados de três elementos:
- Menor utilização de glicogênio muscular (1).
- Produção de glicose reduzida (glicogenólise e gliconeogênese hepática diminuídas) (1).
- Utilização reduzida da glicose transportada pelo plasma (1).
Observação: A capacidade gliconeogênica hepática exacerbada pelo treinamento também proporciona resistência à hipoglicemia durante a atividade física prolongada (1).
Tipo e Tamanho das Fibras Musculares
O treinamento aeróbio induz adaptações metabólicas em cada tipo de fibra muscular (1). O tipo básico de fibra provavelmente não se “modifica” em grau significativo; em vez disso, todas as fibras aprimoram seu potencial aeróbio já existente (1). Atletas de endurance altamente treinados possuem fibras de contração lenta (tipo I) maiores que as fibras de contração rápida (tipo II) existentes no mesmo músculo. As fibras de tipo II são menos utilizadas durante o treinamento aeróbio do que as de tipo I, motivo pelo qual sua capacidade aeróbia não sofre mudanças notáveis (1). Contudo, com o treinamento, algumas fibras de tipo II podem passar por uma transição, de modo a exibir maiores tendências aeróbias. Esse processo é denominado “plasticidade” muscular, que ocorre provavelmente em nível subcelular (1).
Mioglobina
As fibras musculares de contração lenta com alta capacidade de gerar ATP aerobicamente contêm quantidades relativamente grandes de mioglobina (1). O conteúdo de mioglobina do músculo está relacionado ao seu nível de atividade física.
Adaptações Cardiovasculares
Hipertrofia Cardíaca – “Coração de Atleta”
De modo geral, o treinamento aeróbio de longo prazo gera um aumento da massa e do volume do coração, com maiores volumes diastólicos terminais no ventrículo esquerdo durante o repouso e a atividade física (1). A hipertrofia cardíaca reflete uma adaptação fundamental e normal do músculo a uma carga de trabalho aumentada, independentemente da idade (1). O volume cardíaco de homens sedentários é, em média, de aproximadamente 800 mL. Em atletas, o aumento desse volume está relacionado à natureza aeróbia do esporte, de forma que os atletas de endurance possuem, em média, um volume cardíaco 25% maior do que os indivíduos sedentários de mesma idade (1). No entanto, é importante ressaltar que o aumento do tamanho no ventrículo esquerdo não é uma adaptação permanente (1). Com o tempo, o tamanho do coração diminui e retorna aos níveis pré-treinamento — sem efeitos deletérios — à medida que a intensidade do treinamento diminui (1).
Referências Bibliográficas
- MCARDLE, W. D.; KATCH, F. I.; KATCH, V. L. Fisiologia do Exercício – Nutrição, Energia e Desempenho Humano. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2017.