Abordagem Clínica e Nutricional da Alergia Alimentar
Introdução à alergia alimentar
As reações adversas a alimentos englobam tanto as respostas imunomediadas (alergias) quanto aquelas não associadas ao sistema imunológico, como intolerâncias e reações desencadeadas por toxinas alimentares ou fármacos (4). A alergia alimentar (AA), por sua vez, é definida como um efeito adverso reprodutível que ocorre após a exposição a um determinado alimento, causado por uma resposta imunológica específica e exacerbada a uma proteína alimentar ingerida (1, 2, 4). Estima-se que cerca de 1-2% dos adultos e 4-6% das crianças sejam afetados por processos alérgicos alimentares (5).
Fisiopatologia e Mecanismos Imunológicos
Alérgenos alimentares são componentes específicos dos alimentos, tipicamente proteínas, capazes de estimular o sistema imunológico a produzir reações exacerbadas (1). Muitos peptídeos (pedaços de proteínas) são grandes o suficiente para estimular a formação de anticorpos, o que constitui a base das reações alérgicas a alimentos (3). Após ultrapassarem a barreira da mucosa intestinal, as formas peptídicas não reconhecidas pelas células do epitélio induzem uma resposta imunológica (5).
As reações clínicas podem ser categorizadas em quatro tipos de hipersensibilidade (3):
- Mediadas por Imunoglobulina E (IgE): Reações do tipo 1, consideradas imediatas.
- Hipersensibilidade por Citotoxicidade: Reações do tipo 2, consideradas tardias.
- Hipersensibilidade por Imunocomplexos: Reações do tipo 3, consideradas tardias.
- Hipersensibilidade Celular: Reações do tipo 4, consideradas tardias.
As hipersensibilidades do tipo 1 e 4 respondem por quase 100% das alergias alimentares (1).
Reações Mediadas por Imunoglobulina E (IgE) ou Imediatas
Nesse tipo de reação, o contato de IgE específicas, presentes nas membranas de mastócitos e basófilos, com as proteínas-alvo dos alimentos circulantes, resulta na ruptura das membranas dessas células e na liberação de mediadores e citocinas inflamatórias (1). As alergias mediadas por IgE geralmente ocorrem rapidamente após a exposição ao alérgeno (oral, inalatória, cutânea ou parenteral), em questão de segundos a aproximadamente duas horas (1, 4), sendo consideradas alergias de alto risco (2).
As imunoglobulinas são produzidas pelos linfócitos B para combater proteínas consideradas “antígenos”, e os anticorpos produzidos pela IgE são os responsáveis pela resposta imediata em alergias alimentares (5). A IgE produzida pelos linfócitos B possui um sítio de reconhecimento de epítopos específicos do antígeno. Para que ocorra a reação de hipersensibilidade, é essencial a presença de pelo menos dois epítopos por invasor (5). Cada epítopo pode ser uma sequência contínua de aminoácidos (sequenciais) ou de cadeias próximas cujos resíduos de aminoácidos se aproximam na estrutura tridimensional da proteína (conformacionais) (5).
Esses epítopos são reconhecidos pelos mastócitos, e na reexposição ao antígeno, ocorre imediatamente a reação imunológica mediada por IgE (5). Neste momento, os mastócitos liberam compostos que iniciam o processo inflamatório, como histamina, leucotrienos, prostaglandinas, bradicinina e fator de ativação de plaquetas (5). Além dos mastócitos, os linfócitos T também participam da ampliação da resposta inflamatória, estimulando os linfócitos B a produzir mais IgE (5). Em paralelo, os mediadores liberados pelos linfócitos T ativam os eosinófilos, contribuindo para a extensão do processo inflamatório (5).
Reações Não Mediadas por Imunoglobulina E (IgE) ou Tardias
O diferencial desse tipo de reação é que os sintomas são tardios, podendo aparecer horas ou dias após a ingestão do alérgeno (4). Na hipersensibilidade tipo 4, os linfócitos são responsáveis pela liberação dos mediadores inflamatórios, e as reações têm caráter mais tardio, com sintomas gastrointestinais sendo os maiores exemplos (1).
Reações Mistas
Algumas crianças podem apresentar os dois tipos de reações, com manifestações mistas, surgindo sintomas imediatos e tardios após a ingestão do alérgeno (1).
Reações Adversas a Aditivos e Corantes
Reações adversas a aditivos e corantes não possuem um mecanismo imunológico definido e são consideradas intolerâncias (4).
Alergia vs. Intolerância Alimentar
A alergia alimentar difere da intolerância alimentar, pois a intolerância não se inicia com uma desregulação do sistema imune (2). A intolerância alimentar geralmente está associada ao perfil metabólico do paciente (ex: ausência ou ineficiência da lactase); às propriedades farmacológicas do alimento (ex: cafeína, teobromina); à liberação de histamina na digestão de proteínas; e a respostas idiossincráticas (5). As alergias se distinguem por desencadearem reações imunológicas mediadas por IgE, com manifestações clínicas rápidas, ou outras reações imunológicas não mediadas por IgE, que se estabelecem mais lentamente (5).
Fatores de Risco
Muitos fatores estão associados ao desenvolvimento da alergia. O histórico familiar parece ser o mais importante: uma criança tem 40% de chance de desenvolver AA se um familiar próximo tiver histórico de alergia, e 80% de chance se dois familiares tiverem esse histórico (4). Em crianças, a imaturidade da barreira gastrointestinal e do sistema imune no lactente é um fator preeminente para a maior prevalência de AA nessa faixa etária em comparação com adultos (1). Em adultos, a alergia tende a ser uma persistência das alergias alimentares da infância, embora possa haver nova sensibilização mesmo após o desenvolvimento de tolerância (4). A persistência da alergia parece ter uma correlação positiva com a presença de outras comorbidades atópicas e com o nível sérico de IgE (4).
Manifestações Clínicas da Alergia Alimentar
As manifestações clínicas da alergia alimentar podem variar amplamente, afetando diferentes sistemas do corpo. As manifestações mais frequentes ocorrem na pele, como angioedemas, urticárias e dermatites atópicas; no trato gastrointestinal, como hipersensibilidade; na região orofaríngea, pela síndrome de alergia oral; e no trato respiratório, através da asma, broncoespasmo agudo e, em nível extremo, anafilaxia (5).
Manifestações Clínicas por Tipo de Reação e Sistema Corporal:
Reações Mediadas por IgE (Imediatas):
- Cutâneas: Urticária, angioedema (2, 4). O eczema, particularmente em crianças, é associado a diversos alimentos em quadros de alergias alimentares, com alta incidência (cerca de 30% dos casos diagnosticados). Desses, 30% são devidos ao ovo, embora trigo, leite e soja também estejam relacionados, mas em menor escala (5).
- Respiratórias: Rinoconjuntivite, asma (2, 4), respiração ofegante, inflamação das vias aéreas (2), broncoespasmo agudo (5). Quadros de asma, rinite e rinoconjuntivite são menos frequentemente relacionados diretamente a alergias alimentares em crianças, mas podem se tornar importantes em pacientes com sensibilidades alimentares (5).
- Gastrointestinais: Náuseas, vômitos, dor abdominal, suor (2), coceira, formigamento na boca (2).
- Orofaringe: Síndrome da alergia oral (SAO), caracterizada por hiperemia da mucosa oral, formigamento, prurido e edema da região orofaríngea (lábios, boca, palato e língua) (5). A SAO pode ser um indicador inicial de reação anafilática (5).
- Sistêmicas: Hipotensão, hipotermia (2).
Reações Mistas:
- Cutâneas: Dermatite atópica (2, 4).
- Gastrointestinais: Esofagite eosinofílica, gastrite eosinofílica (2, 4).
- Respiratórias: Asma (2, 4).
Reações Não Mediadas por IgE (Tardias):
- Gastrointestinais: Coloproctite alérgica, enteropatia induzida por proteína alimentar, Síndrome da Enterocolite Induzida por Proteína Alimentar (FPIES) (2, 4).
- Respiratórias: Hemossiderose pulmonar (2, 4).
Anafilaxia
As manifestações clínicas de maior gravidade provocadas por alergias alimentares são aquelas que levam à anafilaxia, uma reação sistêmica grave que pode ser fatal se não for tratada com urgência (5). O quadro de anafilaxia compreende uma sequência de sintomas como edema de laringe, faringe, língua e lábios, constrição das vias aéreas pulmonares, hipotensão arterial, edema agudo de pele e angioedema (5). Sintomas gastrointestinais como náuseas, vômitos, diarreia e dores abdominais também são frequentemente relatados (5).
A ausência ou demora no tratamento da anafilaxia pode levar à hipóxia (pela obstrução das vias aéreas associada à baixa pressão arterial), irregularidades de pulso e arritmias, que produzem danos no miocárdio e colapso cardiovascular, resultando em óbito (5). A anafilaxia é geralmente mais frequente e grave em indivíduos asmáticos, pois a constrição das vias aéreas pulmonares é rápida e severa, expondo o paciente a um maior risco (5).
Na literatura, existem relatos de anafilaxia alimentar induzida por exercício físico após a ingestão de alimentos. Essa reação parece envolver, além das proteínas alergênicas, uma resposta inflamatória desregulada pelo esforço físico que desequilibra o balanço de agentes pró e anti-inflamatórios. Um possível mecanismo fisiopatológico atribui à atividade física a função moduladora de leucócitos previamente ativados, que estariam inócuos em órgãos e tecidos de reserva até serem liberados pelo aumento da circulação durante o esforço físico (5).
Alérgenos Alimentares e Reações Cruzadas
Apesar da vasta diversidade da alimentação humana, um grupo restrito de alimentos é responsável por aproximadamente 90% das alergias alimentares (1, 4):
- Leite de vaca
- Ovos
- Soja
- Trigo
- Amendoim
- Castanhas
- Peixes
- Frutos-do-mar
O leite, por ser o primeiro alimento introduzido na alimentação do lactente, é o principal responsável pelas AA nos primeiros dois anos de vida (1). O ovo é o alimento mais relacionado com a presença de doenças atópicas do trato respiratório na fase pré-escolar (1). O amendoim, devido às características peculiares de suas proteínas (alto peso molecular e termorresistência), possui grande potencial alergênico (1).
Reações Cruzadas: Alergias causadas por reações cruzadas normalmente apresentam menor probabilidade de manifestações do que quando provocadas pelas fontes primárias dos antígenos (5). Por exemplo, uma alergia a camarão pode ser desencadeada por caranguejo ou lagosta, mas com um risco de ocorrência menor (75%) (5).
Prevenção da Alergia Alimentar e Fatores Contribuintes
A principal estratégia de prevenção da alergia alimentar é encorajar o aleitamento materno exclusivo até o sexto mês de vida (4). Não há evidências que justifiquem a adoção de uma dieta isenta de alérgenos por gestantes ou lactantes com histórico familiar de alergia alimentar (4).
As diretrizes atuais não recomendam a introdução tardia (após o primeiro ano de vida) de alimentos considerados “mais alergênicos”, como ovo, trigo e peixe, pois isso não aumenta o risco de alergias, mesmo em crianças com risco familiar (1, 4). Pelo contrário, algumas evidências sugerem que a exposição precoce a potenciais alérgenos pode, na verdade, diminuir o risco de desenvolvimento de alergias (2). O consumo materno de alérgenos comuns (amendoins, nozes, leite e trigo) durante a gravidez também pode reduzir o risco de alergias nas crianças (2).
Sensibilização a um Alérgeno
A resposta imune ao primeiro contato com um agente alergênico pode variar. Se não houver reação imune, significa que o indivíduo desenvolveu um mecanismo de tolerância, o que é benéfico para contatos futuros (5). Pessoas que já foram expostas e tiveram uma resposta imune tendem a apresentar uma reação mais rápida em um novo contato com o alérgeno (2). Embora uma resposta de imunidade envolvendo IgG possa se desenvolver, ela geralmente não causa sintomas em contatos subsequentes (5). A concentração exata de alérgeno necessária para provocar uma resposta imune no primeiro contato ainda é desconhecida, e como as respostas são individuais, é difícil estabelecer limites para o desenvolvimento de tolerância (5). Indivíduos com histórico familiar de hipersensibilidade também são mais propensos a manifestações alérgicas a componentes da dieta (5).
É importante notar que a introdução de alimentos complementares, além do leite materno, nos primeiros meses de vida pode aumentar o risco de desenvolvimento de alergias. Essa tendência, no entanto, geralmente se reverte após os 6 meses, período em que os mecanismos de tolerância se estabelecem. Esta ainda é uma área de pesquisa com algumas controvérsias (5).
Tipo de Parto
Diversos estudos têm investigado a influência do tipo de parto no desenvolvimento de alergias, principalmente em relação à microbiota transmitida da mãe para o filho (2). Tem sido observada uma associação entre partos por cesariana e um maior desenvolvimento de alergias (2).
Referências Bibliográficas
- COMINETTI, C.; COZZOLINO, S. Bases Bioquímicas e Fisiológicas da Nutrição nas Diferentes Fases da Vida, na Saúde e na Doença. 2. ed. Manole, 2020. 1369 p.
- YU, W.; FREELAND, D. M. H.; NADEAU, K. C. Food allergy: Immune mechanisms, diagnosis and immunotherapy. Nature Reviews Immunology, v. 16, n. 12, p. 751–765, 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1038/nri.2016.111. Acesso em: 16 jun. 2025.
- RODWELL, V. W. et al. Bioquímica Ilustrada de Harper. 30. ed. ArtMed, 2017. 817 p.
- SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de Alimentação, Nutrição & Dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.
- COZZOLINO, S. Biodisponibilidade de Nutrientes. 6. ed. São Paulo: Manole, 2020. 934 p.