Abordagem Multidisciplinar na Aterosclerose: Fisiopatologia, Diagnóstico e Tratamento
Introdução:
A aterosclerose é uma doença inflamatória crônica de natureza multifatorial que afeta a camada íntima de artérias de médio e grande calibre, culminando na formação de placas ateroscleróticas. A compreensão de sua fisiopatologia complexa, juntamente com o reconhecimento precoce dos fatores de risco, é crucial para a implementação de estratégias de prevenção e tratamento eficazes. Esta análise abrange os aspectos fisiopatológicos, diagnósticos e as abordagens terapêuticas, incluindo modificações no estilo de vida e intervenções farmacológicas.
Fisiopatologia da Aterosclerose
A aterosclerose é caracterizada por um processo patológico que leva ao comprometimento da função e estrutura vascular devido à formação de placas ateroscleróticas na íntima arterial (1, 2, 5). Os mecanismos primários envolvidos incluem:
- Inflamação crônica: Resposta persistente à agressão endotelial (6).
- Estresse oxidativo: Desequilíbrio entre a produção de radicais livres e a capacidade antioxidante do organismo (1, 2).
- Deposição de lipídios: Acúmulo de lipoproteínas, particularmente o colesterol LDL, nas paredes arteriais (1, 2, 3).
Esses processos resultam em disfunção endotelial e remodelamento da parede arterial (1, 2, 3). As lesões iniciais, conhecidas como estrias gordurosas, podem surgir na infância, caracterizadas pelo acúmulo de colesterol em macrófagos (6). Com a progressão da doença e a presença de linfócitos inflamatórios, as placas lipídicas tornam-se mais suscetíveis a complicações (6).
A lesão endotelial promove o aumento da expressão de moléculas de adesão nas células endoteliais e a redução da liberação de óxido nítrico (NO) e outras substâncias protetoras. Subsequentemente, monócitos e lipídios circulantes (LDL) acumulam-se no local da lesão. Os monócitos diferenciam-se em macrófagos, que fagocitam e oxidam as lipoproteínas, transformando-se em células espumosas. Essas células espumosas agregam-se e formam a estria gordurosa (2, 5). O acúmulo de macrófagos libera substâncias inflamatórias, estimulando a proliferação de células musculares lisas e tecido fibroso na artéria, podendo levar à oclusão total do vaso (2).
É importante ressaltar que o principal risco associado à aterosclerose não é o estreitamento do vaso pela placa, mas sim a ruptura da placa, que pode desencadear a formação de um trombo. Esse trombo, por sua vez, pode bloquear a luz vascular em vasos menores, resultando em eventos isquêmicos agudos, como o acidente vascular cerebral (AVC) (2). A aterosclerose é frequentemente associada a distúrbios metabólicos, incluindo anormalidades no metabolismo de lipídios e carboidratos (2).
A redução dos níveis plasmáticos de LDL é eficaz na diminuição de eventos isquêmicos (2, 3). Nesse contexto, o uso de estatinas representa o tratamento primário (3). Embora o HDL seja reconhecido por sua capacidade de absorver cristais de colesterol depositados nas paredes arteriais e por inibir o estresse oxidativo, prevenindo a inflamação vascular, a proteção conferida por seus níveis elevados tem sido objeto de debate, sugerindo que pode ser menos protetora do que se supunha (2, 3).
Fatores de Risco para Aterosclerose
Diversos fatores contribuem para o desenvolvimento e progressão da aterosclerose:
- Idade (1)
- Sexo Masculino (1)
- Tabagismo (1, 3)
- Hipertensão (1, 3, 5)
- Níveis elevados de LDL (1, 3)
- Níveis baixos de HDL (1)
- Obesidade (1, 3)
- Diabetes Mellitus (1)
- Resistência à insulina (1)
- Sedentarismo (3)
Manifestações Clínicas e Diagnóstico
Sintomas
A maioria dos indivíduos permanece assintomática por décadas. Os sintomas geralmente se manifestam apenas quando há uma limitação significativa do fluxo arterial, variando entre 50-70% (3).
Diagnóstico
O processo diagnóstico inicia-se com a análise do histórico familiar e pessoal do paciente (3). Exames complementares frequentemente utilizados incluem:
- Ultrassonografia: Avaliação de artérias de grosso calibre (3).
- Angiografia com contraste (3).
Alterações Bioquímicas Relevantes
- HDL: Diminuído (1, 2).
- LDL: Elevado (1, 2).
- Colesterol total / HDL > 5: Considerado um indicador de risco cardiovascular (1, 2).
É crucial reconhecer que, embora o LDL reflita a situação aguda, a aterosclerose se desenvolve ao longo de anos. Portanto, a normalização dos níveis de LDL não exclui o risco de doença (3).
Estratificação do Risco Cardiovascular
A identificação de indivíduos assintomáticos com maior predisposição à aterosclerose é fundamental para a prevenção efetiva, visto que um evento coronariano agudo é a primeira manifestação da doença em pelo menos metade dos casos (6).
Algoritmos de Avaliação de Risco
O Escore de Risco Global (ERG) é um algoritmo amplamente empregado para estimar o risco em 10 anos de infarto do miocárdio, AVC ou insuficiência cardíaca (fatais ou não fatais), ou insuficiência vascular periférica (6). A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) disponibiliza uma calculadora para este fim (6).
Nota: Em pacientes sob terapêutica hipolipemiante, a estratificação de risco e a determinação das metas terapêuticas requerem um ajuste. A SBC propõe um fator de correção para o colesterol total (CT) no cálculo do ERG, multiplicando o CT por 1,43, considerando que o uso de estatinas pode reduzir os níveis de CT em 30% (6).
Categorias de Risco
As categorias de risco são definidas da seguinte forma (6):
Risco Muito Alto
Indivíduos com doença aterosclerótica significativa (coronariana, cerebrovascular, vascular periférica, com ou sem eventos clínicos, ou obstrução ≥ 50% em qualquer território arterial.
Risco Elevado
Pacientes que se enquadram em uma ou mais das seguintes condições:
- Aterosclerose subclínica documentada por metodologia diagnóstica.
- Aneurisma de aorta abdominal.
- Doença renal crônica em fase não dialítica.
- LDL ≥ 190 mg/dL.
- Diabetes Mellitus tipo I ou II com LDL entre 70 e 189 mg/dL e presença de estratificadores de risco (ER) ou doença aterosclerótica subclínica (DASC).
- Pacientes com LDL entre 70-189 mg/dL, do sexo masculino com ERG > 20%, e do sexo feminino com ERG > 10%.
Nota: Para pacientes com diabetes, ER e DASC são definidos como (6):
- Estratifcadores de Risco (ER): Idade ≥ 48 anos para homens e ≥ 54 anos para mulheres; tempo de diagnóstico de diabetes > 10 anos; história familiar de parente de 1º grau com DCV prematura (< 55 anos para homens e < 65 anos para mulheres); tabagismo (pelo menos 1 cigarro no último mês); hipertensão arterial sistêmica; síndrome metabólica (conforme International Diabetes Federation); albuminúria > 30 mg/g de creatinina e/ou retinopatia; taxa de filtração glomerular (TGF) < 60 mL/min.
- Doença Aterosclerótica Subclínica (DASC): Ultrassonografia de carótida com presença de placa > 1,5 mm; Índice Tornozelo-Braquial (ITB) < 0,9; escore de cálcio na artéria coronária (CAC) > 10; presença de placas ateroscleróticas na angiotomografia de coronárias.
Risco Intermediário
Indivíduos com ERG entre 5-20% no sexo masculino e entre 5-10% no sexo feminino, ou diabéticos sem os critérios de DASC ou ER (6).
Baixo Risco
Pacientes do sexo masculino e feminino com risco em 10 anos < 5% calculado pelo ERG (6).
Abordagens Terapêuticas
As estratégias de tratamento da aterosclerose visam principalmente a redução dos fatores de risco modificáveis e a estabilização da placa aterosclerótica.
Metas Terapêuticas
LDL-c
Estudos observacionais, caso-controle e genéticos consistentemente demonstram a correlação entre níveis elevados de colesterol plasmático e risco de doença cardiovascular (DCV), particularmente doença arterial coronariana (DAC) e AVC isquêmico (6). Ensaios clínicos de intervenção, por sua vez, evidenciam uma redução inequívoca de desfechos cardiovasculares com a diminuição do colesterol plasmático, especialmente do LDL-c (6).
Grandes ensaios clínicos com estatinas indicam que uma maior redução absoluta do LDL-c está associada a uma maior redução do risco relativo de eventos cardiovasculares. Atualmente, não há um limiar abaixo do qual o tratamento hipolipemiante deixe de conferir benefício cardiovascular (6). A SBC recomenda o uso de medicamentos nas doses empregadas em grandes ensaios clínicos, além do alcance das metas (6).
Risco | Sem estatina: Redução (%) | Com estatina: Redução (%) | Meta de LDL (mg/dL) | Meta de não-HDL (mg/dL) |
Muito alto | >50 | <50 | <80 | |
Alto | >50 | <70 | <100 | |
Intermediário | 30-50 | <100 | <130 | |
Baixo | >30 | <130 | <160 |
Tabela 1: Metas terapêuticas absolutas e percentuais de redução do colesterol LDL e não-HDL para pacientes com ou sem uso de estatinas (6).
HDL-c, Triglicerídeos e Outras Variáveis
Atualmente, não são propostas metas para o HDL-c, e o tratamento medicamentoso com o objetivo de elevar seus níveis não é recomendado (6). Em relação aos triglicerídeos, pacientes com valores ≥ 500 mg/dL devem receber terapia apropriada para reduzir o risco de pancreatite (6). Para pacientes com triglicerídeos entre 150-499 mg/dL, a terapia deve ser individualizada, considerando o risco cardiovascular e condições associadas (6).
Tratamento Farmacológico
Estatinas
As estatinas são a primeira linha de tratamento para a redução do LDL-c, sendo consenso em todas as diretrizes (3). Esses fármacos inibem competitivamente a enzima hidroximetilglutaril-coenzima A (HMG-CoA) redutase, reduzindo a síntese de colesterol nos hepatócitos e aumentando a expressão de receptores de LDL no fígado (2, 3, 5). A redução do LDL é diretamente proporcional à diminuição do risco de eventos cardíacos (3).
Intensidade | Redução de LDL (%) com dose diária | Exemplos |
Baixa | <30 | Lovastatina 20, Sinvastatina 10, Pravastatina 10-20, Fluvastatina 20-40, Pitavastatina 1 |
Moderada | 30-50 | Lovastatina 40, Sinvastatina 20-40, Rosuvastatina 5-10, Atorvastatina 10-20, Pravastatina 40-80, Fluvastatina 80, Pitavastatina 2-4 |
Alta | ≥ 50 | Atorvastatina 40-80, Rosuvastatina 20-40, Sinvastatina 40/Ezetimiba 10 |
Tabela 2: Intensidade do tratamento hipolipemiante e exemplos de estatinas (6).
Estratégias Nutricionais e Dietéticas
Fibras
Fibras, como o farelo de aveia, combinam-se com os ácidos biliares no trato gastrointestinal, impedindo sua reabsorção e contribuindo para a redução do colesterol circulante (2).
Gorduras Saturadas
O consumo elevado de gorduras saturadas está diretamente associado ao desenvolvimento da aterosclerose (1, 2). A redução da ingestão desses lipídios é uma conduta fundamental.
Alho (Allium sativum)
Estudos demonstram que o uso contínuo de altas doses de drágeas de alho em pó pode reduzir significativamente o aumento no volume da placa aterosclerótica e até mesmo resultar em uma leve regressão em um período de 48 meses (4). Acredita-se que o A. sativum possua propriedades tanto preventivas quanto curativas na arteriosclerose (4). Recomenda-se o consumo de alho macerado, cru ou levemente cozido, podendo ser adicionado de azeite.
Angelica sinensis
Esta planta medicinal tem demonstrado atuação no metabolismo lipídico e na aterogênese, promovendo a redução da trigliceridemia e da formação de placas de ateroma (4).
Estratégias Antioxidantes e Anti-inflamatórias
A inclusão de alimentos com propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias é importante para combater o estresse oxidativo e a inflamação crônica associados à aterosclerose.
Atividade Física
O sedentarismo e a obesidade são fatores de risco significativos para a aterosclerose, tornando a atividade física uma parte essencial do tratamento (3). A prática regular de exercícios físicos aeróbios está associada a uma diminuição da morbidade e mortalidade cardiovascular, reduzindo o risco de eventos coronarianos fatais e não fatais em indivíduos aparentemente saudáveis, com escore de risco coronariano elevado e em cardiopatas (6).
No contexto da reabilitação cardíaca, o exercício contínuo de moderada intensidade é considerado uma forma segura e eficaz de treinamento físico e tem sido priorizado (6). Em pacientes com doença coronariana aterosclerótica, o exercício pode promover a estabilização ou até mesmo a regressão da aterosclerose, além de uma queda acentuada da mortalidade, tanto por causas cardíacas quanto por outras (6). Existe uma associação inversa e independente entre HDL e DAC, destacando a ação protetora de um de seus componentes, a ApoA-1 (6).
Apesar dos desfechos clínicos favoráveis proporcionados pelo exercício, a elevação do HDL e a redução do colesterol total, LDL e triglicerídeos decorrentes de sua ação são modestas, contribuindo pouco para o alcance das metas terapêuticas rigorosas (6). A explicação para os desfechos clínicos favoráveis reside principalmente nas modificações funcionais induzidas pelo exercício, como o aprimoramento do HDL e do LDL, com aumento da resistência à oxidação do LDL, indução da produção de paraoxonase, modificações das frações HDL2 e HDL3, e aumento do efluxo de colesterol (6). A atividade física de intensidade moderada promove a redução sustentada de VLDL e triglicerídeos (6). No entanto, o exercício, quando realizado em grandes volumes, gera um aumento significativo do HDL, que adquire características que favorecem suas múltiplas ações antiateroscleróticas (6). Dessa forma, o aumento do volume de exercício pode ser mais relevante do que a intensidade para proporcionar benefícios mais amplos (6).
Os exercícios aeróbios devem ser realizados pelo menos três vezes por semana, em sessões de 30-60 minutos (6).
Nota: Uma atividade é considerada predominantemente aeróbia quando o indivíduo, ao caminhar ou correr, por exemplo, permanece discretamente ofegante, conseguindo falar frases completas sem interrupções, inspirando no decorrer de duas ou três passadas e expirando no decorrer de uma ou duas passadas (6). O mesmo princípio se aplica a outras modalidades como ciclismo, natação e dança. Se houver uma atividade prolongada, realizada com a participação de grandes grupos musculares, na qual o indivíduo permanece confortável e consegue sincronizar o movimento do corpo com a ventilação pulmonar, pode-se inferir uma participação predominante do metabolismo aeróbio (6).
Nota: A prescrição da intensidade do exercício aeróbio a partir do teste ergométrico cardiopulmonar é considerada o padrão ouro (6).
Referências Bibliográficas
- DOMINICZAK, M. Serie Carne e Osso Metabolismo. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. 244 p.
- HALL, J. E.; GUYTON, A. C. Tratado de Fisiologia Médica. 13. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2017. 1176 p.
- LIBBY, P. et al. Atherosclerosis. Nature Reviews Disease Primers, v. 5, n. 1, p. 1–18, 16 ago. 2019. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41572-019-0106-z. Acesso em: 26 ago. 2021.
- SAAD, G. de A.; LÉDA, P. H. de O.; SÁ, I. M.; SEIXLACK, A. C. Fitoterapia Contemporânea – Tradição e Ciência na Prática Clínica. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. 441 p.
- RITTER, J. M. et al. Rang & Dale Farmacologia. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2020. 789 p.
- SOCIEDADE BRASILEIRA DE CARDIOLOGIA. Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose. Rio de Janeiro, v. 109, n. 2, Supl. 1, ago. 2017. ISSN 0066-782X.