Avaliação do Estado de Ferro: Biomarcadores e Interpretação Clínica


Avaliação do Estado de Ferro: Biomarcadores e Interpretação Clínica


Introdução

O ferro é um micronutriente essencial para diversas funções biológicas, incluindo o transporte de oxigênio e o metabolismo energético. A avaliação de seu estado no organismo é complexa, exigindo a análise de múltiplos biomarcadores para um diagnóstico preciso de deficiência ou sobrecarga.


Ferro Sérico

O ferro sérico reflete o equilíbrio entre a entrada e a saída do mineral na circulação (5). No entanto, é um indicador bastante instável, pois sua concentração pode ser alterada por processos infecciosos, inflamatórios e até mesmo pelo horário da coleta, com valores geralmente mais elevados pela manhã e diminuídos à noite (5).

Valores de Referência:

Os valores de referência do ferro sérico variam:

  • Mulheres: 28-170 μg/dL (4) ou 30-160 μg/dL (6)
  • Homens: 45-182 μg/dL (4) ou 30-160 μg/dL (6)

Valores Aumentados (Sobrecarga de Ferro):

  • Hemocromatose idiopática (4).
  • Hemossiderose: Consequência do aporte excessivo de ferro, podendo alcançar >300 μg/dL (4).
  • Formação diminuída de eritrócitos (4).
  • Destruição aumentada dos eritrócitos (4).
  • Lesão hepática aguda: Pode atingir >1000 μg/dL (4).
  • Uso de anovulatórios orais contendo progesterona (podendo chegar a >200 μg/dL) ou gravidez (4).
  • Elevação pré-menstrual: Aumento de 10-30% (4).
  • Toxicidade aguda ao ferro (4).
  • Intoxicação por chumbo (4).
  • Transfusões repetidas (4).
  • Hepatite aguda (4).
  • Deficiência de vitamina B6 (4).
  • Anemia sideroblástica (6).

Valores Diminuídos (Deficiência de Ferro):

  • Anemia Ferropriva (4).
  • Anemias normocrômicas ou microcíticas da infecção e/ou doenças crônicas (4).
  • Infecção aguda e crônica (4).
  • Carcinoma (4).
  • Hipotireoidismo (4).
  • Estado pós-operatório e Kwashiorkor (4).
  • Nefrose: Devido à perda da proteína de ligação do ferro na urina (4).
  • Anemia Perniciosa (AP) no início da remissão (4).
  • Menstruação: Diminuição de 10-30% (4).
  • Perda de sangue (6).

Limitações do Ferro Sérico:

  • O uso de anovulatórios orais eleva os valores do ferro e/ou da capacidade total de ligação do ferro (4).
  • Apresenta variação diurna, com valores normais no meio da manhã, baixos no final da tarde, e muito baixos próximos à meia-noite (4).

Capacidade Total de Ligação do Ferro (TIBC)

Definição:

A TIBC é um indicador menos suscetível à variação biológica do que o ferro sérico (5). Possui uma relação inversa com os estoques de ferro: à medida que as reservas de ferro são depletadas, os valores de TIBC tendem a aumentar (5). A TIBC mede a capacidade do sangue de ligar o ferro à transferrina (TRF) (4). Um miligrama de TRF liga-se a 1,25 μg de ferro; consequentemente, um nível sérico de TRF de 300 mg/dL é equivalente a uma TIBC de (300 x 1,25) = 375 μg/dL (4). A TIBC representa, portanto, uma maneira indireta de avaliar o nível de TRF (4).

Valores de Referência:

  • 255 a 450 μg/dL (4).

Valores Aumentados:

  • Deficiência de ferro (4).
  • Perda aguda e crônica de ferro (4).
  • Lesão hepática aguda (4).
  • Final da gravidez (4).
  • Uso de contraceptivos contendo progesterona (4).

Valores Diminuídos:

  • Hemocromatose (4).
  • Cirrose hepática (4).
  • Talassemia (4).
  • Anemia da infecção e doenças crônicas (4).
  • Nefrose (4).
  • Hipertireoidismo (4).

Ferritina

Definição:

A ferritina é o indicador mais sensível dos estoques de ferro (1). A concentração de ferritina sérica está em equilíbrio com os estoques corporais (1). Em adultos, cada 1 mg de ferritina por litro (L) de plasma é proporcional a 8 mg de estoque de ferro (1).

A ferritina é uma proteína de fase aguda, o que significa que seus níveis podem estar elevados na presença de infecções, processos inflamatórios e em alguns tumores, mascarando uma deficiência de ferro (6). Em pacientes obesos, a ferritina pode estar aumentada devido à inflamação crônica. Portanto, o quadro clínico deve ser investigado com cautela (6). Na ausência de inflamação, a ferritina serve como o melhor indicador do status do ferro (2).

No estágio inicial do desenvolvimento da deficiência de ferro, observa-se redução da concentração sérica de ferritina (1). Além disso, sua concentração pode ser aumentada pelo consumo de etanol e pela hiperglicemia (1).

Valores de Referência:

  • Ferritina <12 ng/mL: Confirma o diagnóstico de deficiência (6).
  • Ferritina >200 ng/mL: Exclui o diagnóstico de deficiência, mesmo em pacientes com doenças inflamatórias ou neoplásicas (6).
  • Homens: 23-336 ng/mL (4) ou 30-300 ng/mL (6).
  • Mulheres: 11-306 ng/mL (4) ou 10-200 ng/mL (6).

Nota: Em pacientes com reservas normais de ferro, o valor da ferritina deve ser >30 ng/mL (4).

Valores Diminuídos:

  • Deficiência de ferro (4).
  • Hemodiálise (4).
  • Valores <15 ng/mL são considerados pela OMS como estoque esgotado de ferro (5).

Valores Aumentados:

  • Doenças hepáticas agudas e crônicas (4).
  • Alcoolismo (4).
  • Neoplasia maligna (4).
  • Infecção e inflamação (4).
  • Hipertireoidismo, doença de Gaucher, infarto agudo do miocárdio (6).
  • Sobrecarga de ferro (4).
  • Anemias (diferentes da ferropriva) (4).
  • Carcinoma de células renais: Devido à hemorragia no tumor (4).
  • Doença renal terminal: Não são raros valores >1000 μg/L. Nesses pacientes, valores <200 μg/L são específicos para deficiência de ferro (4).

Receptor de Transferrina Solúvel (sTfR)

O receptor de transferrina solúvel (sTfR) é um indicador útil no diagnóstico da deficiência de ferro, pois não é afetado na fase aguda dos processos inflamatórios (5). Sua concentração sérica aumenta em proporção à extensão da deficiência de ferro (1). Isso significa que quando o fornecimento de ferro para a medula óssea é marginal, mas ainda não suficiente para causar declínio significativo da concentração sanguínea de hemoglobina, o sTfR já demonstra elevação (1). Este indicador parece ser sensível e específico para a deficiência de ferro.


Transferrina (TRF)

A transferrina, também conhecida como siderofilina, é a principal proteína plasmática com função de transporte do ferro (6). É produzida no fígado, no sistema reticuloendotelial, nos testículos e nos ovários (6). Possui uma meia-vida de 7 dias (6).

Valores de Referência:

  • 230-390 mg/dL (6).

Valores Elevados:

Em situações de carência de ferro, sua produção é aumentada (6). Na deficiência de ferro ou anemia hipocrômica, os níveis de transferrina aumentam, mas a saturação é baixa devido aos baixos níveis de ferro (6).

Valores Diminuídos:

Na sobrecarga de ferro ou na hemocromatose, há um aumento na saturação da transferrina (6).


Saturação da Transferrina Sérica

Em indivíduos normais, aproximadamente um terço da capacidade de ligação do ferro plasmático é saturado (5). Em pessoas com deficiência de ferro, a capacidade de captação total do ferro pelo plasma aumenta, resultando em um maior número de sítios de ligação e, consequentemente, uma diminuição do percentual de saturação da transferrina (5).

Valores de Referência:

  • <16%: Considerado baixo (1,5).
  • 30-35%: Considerado normal (1).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que indivíduos com deficiência de ferro acentuada sejam aqueles que apresentam valores abaixo de 16% de saturação (1,5). A capacidade de trabalho e a função muscular podem ser afetadas pela deficiência de ferro, independentemente do diagnóstico de anemia (2).


Índices Hematimétricos

Indivíduos com anemia por deficiência de ferro frequentemente apresentam eritrócitos microcíticos no sangue, com valores reduzidos de Volume Corpuscular Médio (VCM) e Hemoglobina Corpuscular Média (HCM) (1). No entanto, é crucial notar que essas alterações não são exclusivas da deficiência de ferro (1).

Baixa Saturação da Transferrina na Anemia

Durante a anemia por deficiência de ferro, o organismo também apresenta uma baixa saturação da transferrina (6).


Hepcidina

A hepcidina é um hormônio peptídico que desempenha um papel central na regulação do metabolismo do ferro. Níveis aumentados de hepcidina bloqueiam a reciclagem normal do ferro ligado à transferrina pelos macrófagos, levando a um aumento dos níveis intracelulares de ferro e uma diminuição dos níveis séricos de ferro (3).


Hematócrito e Hemoglobina

Hematócrito

O hematócrito é influenciado pelos mesmos fatores que afetam a hemoglobina, mas é especialmente sensível a alterações no volume plasmático (1).

Hemoglobina

As concentrações de hemoglobina diminuem apenas durante os estágios finais da deficiência de ferro (1). No entanto, sua concentração pode ser afetada por outras deficiências nutricionais, como as de ácido fólico, vitamina B12 e cobre, além de outras condições como gestação, tabagismo, infecções, inflamação e desidratação (1). Na anemia, a hemoglobina apresenta valores em homens (<13 g/dL) e mulheres (<12 g/dL).


Referências Bibliográficas

  1. LANCHA JR., A. H.; ROGERI, P. S.; PEREIRA-LANCHA, L. O. Suplementação Nutricional no Esporte. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019. 266 p.
  2. COMMUNICATIONS, S. Nutrition and Athletic Performance. Medicine & Science in Sports & Exercise, v. 48, n. 3, p. 543–568, 2016.
  3. ROSS, A. C.; CABALLERO, B.; COUSINS, R. J.; TUCKER, K. L.; ZIEGLER, T. R. Nutrição Moderna de Shills na Saúde e na Doença. 11. ed. São Paulo: Manole, 2016. 1642 p.
  4. WILLIMSON, M. A.; SNYDER, L. M. Wallach – Interpretação de Exames Laboratoriais. 10. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. 1225 p.
  5. SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de alimentação, nutrição & dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.
  6. CALIXTO-LIMA, L.; REIS, N. T. Interpretação de Exames Laboratoriais Aplicados à Nutrição Clínica. 1. ed. Rio de Janeiro: Rubio, 2012. 490 p.

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