Bulimia Nervosa: Abordagem Multidisciplinar e Fisiopatologia
Introdução
A Bulimia Nervosa (BN) é um transtorno alimentar complexo, caracterizado por episódios recorrentes de compulsão alimentar, seguidos por comportamentos compensatórios inadequados para evitar o ganho de peso. Este documento visa fornecer uma visão abrangente sobre a fisiopatologia, diagnóstico, tratamento e prognóstico da BN, com foco na sua relevância clínica para profissionais de saúde.
Fisiopatologia da Bulimia Nervosa
A Bulimia Nervosa é definida pela ocorrência de pelo menos um episódio de compulsão alimentar por semana, acompanhado de comportamentos compensatórios inadequados para controle ponderal (1,2). Os episódios de compulsão são frequentemente desencadeados por desconforto físico, como dor abdominal ou náuseas, culminando em sentimentos de depressão e autodepreciação. A preocupação excessiva com a forma e o peso corporal impulsiona a utilização de métodos compensatórios, incluindo exercícios físicos vigorosos, autoindução de vômitos e uso abusivo de laxantes e diuréticos (3).
Os episódios compulsivos, muitas vezes realizados em segredo, são acompanhados por sentimentos intensos de culpa, vergonha e desejo de autopunição (2). Durante esses episódios, a ingestão calórica pode variar de 2.000 a 5.000 kcal, predominantemente de alimentos industrializados ricos em gorduras e açúcares (2). Observa-se uma perda de controle sobre a alimentação, com alimentos frequentemente rotulados como “proibidos” sendo os alvos (1). Apesar do medo de ganhar peso, não há recusa alimentar generalizada.
Assim como na Anorexia Nervosa, a compulsão pela magreza na BN pode se tornar uma obsessão debilitante, com impactos significativos na saúde psicológica e social do indivíduo (1). A principal distinção entre os dois transtornos reside no peso corporal; na Anorexia, a magreza é um critério diagnóstico central, enquanto na Bulimia, o peso pode estar dentro da faixa de normalidade (1).
Frequentemente, a BN permanece oculta por anos, com pacientes buscando ajuda apenas na terceira ou quarta década de vida. Essa demora no diagnóstico e tratamento dificulta a recuperação, uma vez que os comportamentos compensatórios tendem a se consolidar profundamente (2).
Aspectos Psicológicos e Neurobiológicos
As características psicológicas da BN incluem um sentimento de culpa em relação aos excessos alimentares e aos comportamentos purgativos, que são mantidos em segredo (2). É comum que, antes do início dos sintomas, os pacientes apresentem baixa autoestima, dificuldades em interações sociais, necessidade de aprovação externa, labilidade emocional, humor deprimido e baixa tolerância à ansiedade e frustração (2). Pacientes com BN frequentemente exibem impulsividade e instabilidade emocional, características que se alinham com os comportamentos descontrolados e métodos purgativos (2). A depressão pode tanto ser um fator preexistente quanto uma consequência da subnutrição (2).
Do ponto de vista etiopatogênico, a BN é associada a anormalidades no sistema catecolaminérgico, com uma diminuição da atividade serotoninérgica (2). Essa disfunção serotoninérgica pode atuar como um fator predisponente para o desenvolvimento do transtorno, sendo que os episódios de compulsão alimentar podem ser um mecanismo compensatório para mitigar as consequências negativas dessa diminuição (2). Fatores como abuso sexual e comentários depreciativos sobre a aparência física na infância são frequentemente associados à Bulimia Nervosa (2). O transtorno também pode estar ligado à ansiedade decorrente de transições de vida, como o término dos estudos ou o início de uma nova carreira (3).
Manifestações Clínicas e Diagnóstico
Sinais Físicos e Histórico Clínico
A BN pode apresentar uma série de sinais e sintomas físicos decorrentes dos comportamentos compensatórios. O Signo de Russell, caracterizado por lesões no dorso das mãos causadas pela arcada dentária durante a autoindução do vômito, é um achado comum. Outros sinais incluem hemorragia subconjuntival, resultante do esforço durante o vômito, e distúrbios cardiovasculares como taquicardia e hipotensão. Complicações pulmonares, como broncoaspiração e infecções recorrentes, e a ocorrência de diabetes também podem ser observadas.
No histórico clínico, é comum identificar:
- Distúrbios hidroeletrolíticos, manifestando-se como fraqueza muscular, cãibras e arritmias cardíacas (2).
- Necessidade de tratamentos odontológicos devido a lesões no esmalte dentário (2).
- Sinais de sofrimento gástrico, incluindo gastrite e hérnia de hiato (2).
- Anemia decorrente de sangramento e/ou uso de laxantes (2).
- Uso abusivo de álcool e/ou estimulantes (2).
- Edema pré-tibial, associado ao uso de laxantes e diuréticos (2).
Métodos Purgativos Comuns
A autoindução do vômito é o método purgativo mais frequente, observado em quase 90% dos casos. Pacientes com BN grave, que apresentam múltiplos episódios de vômito por dia, podem desenvolver ulcerações no dorso da mão, conhecidas como Sinal de Russell (2). Com a prática, alguns indivíduos conseguem vomitar sem estímulo mecânico, apenas se inclinando ou pressionando o abdômen (2). Além disso, o uso de medicamentos, como laxantes e diuréticos, é comum (2).
Consequências Físicas dos Comportamentos Purgativos
Pacientes com alta frequência de vômitos podem apresentar alargamento bilateral das glândulas parótidas, bem como cáries ou abrasões do esmalte dentário (2). A inflamação do esôfago é uma complicação comum, e, mais raramente, pode ocorrer a ruptura gástrica devido à ingestão excessiva de alimentos (2).
Diagnóstico e Classificação
O diagnóstico da Bulimia Nervosa, de acordo com o DSM-5, exige a presença de comportamentos compensatórios pelo menos uma vez por semana, durante três meses.
Diagnóstico Diferencial
O diagnóstico diferencial da BN deve ser realizado com a anorexia nervosa do tipo compulsiva/purgativa (2).
Classificação da Gravidade
O DSM-5 não diferencia subtipos de bulimia, mas classifica a gravidade com base na frequência semanal dos comportamentos compensatórios:
- Leve: 1 a 3 episódios por semana (2).
- Moderado: 4 a 7 episódios por semana (2).
- Grave: 8 a 13 episódios por semana (2).
- Extrema: Mais de 14 episódios por semana (2).
Epidemiologia e Prevalência
A Bulimia Nervosa afeta predominantemente mulheres, com uma proporção de até 10:1 em relação aos homens, e sua prevalência pode atingir aproximadamente 4,2%, dependendo dos critérios de avaliação utilizados (1,2). O início da BN é considerado “tardio” em comparação com a Anorexia Nervosa, geralmente ocorrendo entre os 20 e 30 anos de idade. No entanto, muitos pacientes demoram anos para buscar ajuda profissional, seja por vergonha ou por falta de desejo de tratamento (1,2). Evidências sugerem a existência de um componente genético na BN (2).
Abordagem Terapêutica
O tratamento da Bulimia Nervosa é predominantemente psicológico, embora a abordagem multidisciplinar seja fundamental.
Psicoterapia
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é a intervenção mais estudada e com maior eficácia comprovada no tratamento da Bulimia Nervosa (2). A TCC atua na identificação e modificação de crenças distorcidas e disfuncionais que contribuem para o desenvolvimento e manutenção dos transtornos alimentares (2). Apesar da boa aceitação da TCC, a remissão completa dos episódios compulsivos e purgativos ocorre em apenas 30-40% dos casos (2).
Terapia Farmacológica
No contexto da Bulimia Nervosa, os antidepressivos são eficazes como parte do programa inicial de tratamento (2). Diversas classes de antidepressivos demonstraram eficácia na redução das compulsões alimentares e dos comportamentos purgativos, bem como na diminuição das recaídas (2).
A fluoxetina é a única medicação atualmente aprovada pelo FDA para a bulimia, sendo a mais estudada e apresentando resultados positivos com doses de 60 mg/dia (2). Quando a fluoxetina não é bem tolerada, a sertralina pode ser utilizada (2). Recomenda-se a continuidade do tratamento farmacológico por pelo menos 9 meses, sendo geralmente indicado no mínimo um ano (2).
Terapia Nutricional
A terapia nutricional, embora não seja a abordagem primária na Bulimia Nervosa, desempenha um papel crucial (2). Seu objetivo principal é a redução dos episódios de compulsão por meio da educação alimentar e do estabelecimento de um padrão regular de refeições (2). As recomendações nutricionais são consistentes com as da população geral, com atenção especial à reposição de micronutrientes para corrigir os desequilíbrios causados pelos mecanismos de purgação (2).
É aconselhável o fracionamento da alimentação em pelo menos 6 refeições por dia, visando promover maior saciedade e diminuir a compulsão alimentar (2). O consumo adequado de fibras e água é importante para prevenir quadros de constipação intestinal (2). É benéfico que o paciente evite refeições sozinho, aprendendo a comer respeitando horários e evitando restrições alimentares (2). Além disso, é fundamental educar o paciente sobre a ineficácia das purgações para a perda de gordura, explicando que a perda ponderal inicial é primariamente devida à perda de líquidos (2).
Prognóstico
Na Bulimia Nervosa, aproximadamente 50% dos pacientes recuperam-se completamente em um período de 2 a 4 anos. Contudo, cerca de 25% dos casos evoluem para a cronificação, podendo sofrer com a BN por mais de 10 anos (2). Não é incomum que pacientes com BN desenvolvam outros transtornos alimentares, sendo o Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA) o mais prevalente entre eles (2).
Referências Bibliográficas
- ROSS, A. C. et al. Nutrição Moderna de Shills na Saúde e na Doença. 11. ed. São Paulo: Manole, 2016. 1642 p.
- RIBAS FILHO, D.; SUEN, V. M. M. Tratado De Nutrologia. 2. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2019. 646 p.
- BRANDÃO, M. L. Psicofisiologia. 4. ed. Atheneu, 2019. v. 1.