Cãibras: Fisiopatologia, Diagnóstico e Manejo


Cãibras: Fisiopatologia, Diagnóstico e Manejo


Introdução

As cãibras definem-se como contrações involuntárias e dolorosas que podem manifestar-se em contextos clínicos distintos, exigindo abordagens específicas. O quadro abrange desde as cãibras noturnas, predominantemente idiopáticas e comuns no repouso de idosos, até as cãibras de calor, desencadeadas por esforço intenso e desequilíbrios hidroeletrolíticos (perda de sódio e fluidos) em indivíduos não aclimatados. A distinção precisa entre essas etiologias e outras condições mimetizadoras é fundamental para direcionar a conduta terapêutica correta, seja através de alongamentos ou reposição eletrolítica.


Cãibras Musculares:

A cãibra muscular define-se como uma contração breve, involuntária e dolorosa de um músculo ou grupo muscular. Embora sua ocorrência seja comum em indivíduos saudáveis, predominantemente em pessoas de meia-idade e idosos, a manifestação pode ocorrer durante o repouso, sono ou associada ao exercício físico. As cãibras noturnas acometem frequentemente a região da panturrilha, provocando flexão plantar do pé e dos pododáctilos, embora outros grupos musculares também possam ser afetados.

Diagnóstico Diferencial

Diversas condições clínicas podem mimetizar o quadro de cãibras e devem ser diferenciadas:

  • Distonias: Podem cursar com espasmos musculares; contudo, os sintomas tendem a ser mais sustentados, recorrentes e abrangem musculaturas distintas das tipicamente afetadas por cãibras em membros inferiores (ex.: pescoço, mãos, face e musculatura corporal generalizada).
  • Tetania: Caracteriza-se por espasmos geralmente mais sustentados, frequentemente acompanhados de contrações breves e repetitivas. A apresentação é comumente bilateral e difusa, embora possa ocorrer espasmo carpopedal isolado.
  • Isquemia Muscular: Em pacientes com doença arterial periférica, o esforço pode desencadear dor na panturrilha (claudicação). Esta dor resulta do fluxo sanguíneo inadequado e não de contração muscular propriamente dita.
  • Cãibras Ilusórias: Sensação subjetiva de cãibra sem a presença de contração muscular ou isquemia objetiva.

Etiologia e Fatores de Risco

As apresentações mais prevalentes de cãibras nos membros inferiores classificam-se em:

  1. Cãibras idiopáticas benignas: Ocorrem na ausência de patologia causal, tipicamente no período noturno.
  2. Cãibras associadas ao exercício: Manifestam-se durante ou imediatamente após a atividade física.

Embora a experiência de cãibras musculares seja quase universal, certos fatores predispõem ao aumento do risco e gravidade, incluindo:

  • Rigidez da musculatura da panturrilha (secundária à inatividade, falta de alongamento ou edema crônico em membros inferiores).
  • Desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos (hipocalemia ou hipomagnesemia).
  • Disfunções metabólicas e neurológicas.
  • Hemodiálise (remoção de grandes volumes de líquido em doença renal terminal).
  • Uso de determinados fármacos e exposição a toxinas.

Avaliação Clínica

A propedêutica das cãibras musculares deve focar na identificação de etiologias tratáveis, diferenciando o quadro de claudicação e distonias através da avaliação clínica.

Anamnese e Revisão dos Sistemas

A história da doença atual deve detalhar a duração, frequência, localização, gatilhos e sintomas associados (como rigidez, fraqueza, dor e parestesias). É crucial investigar fatores contribuintes para desidratação ou desequilíbrios eletrolíticos, tais como êmese, diarreia, sudorese excessiva, uso de diuréticos, diálise recente e gestação.

A revisão dos sistemas deve rastrear:

  • Endocrinometabólico: Intolerância ao frio, ganho de peso e alterações dermatológicas (sugestivos de hipotireoidismo); amenorreia ou irregularidade menstrual (cãibras gestacionais).
  • Neurológico: Fraqueza muscular (distúrbios neurológicos), dor ou perda de sensibilidade (neuropatias periféricas ou radiculopatias).

Deve-se colher uma história farmacológica completa, incluindo uso de álcool e outras substâncias.

Exame Físico

O exame físico geral deve inspecionar a pele em busca de estigmas de transtorno por uso de álcool, edema não depressível ou madarose (sugestivos de hipotireoidismo), além de avaliar o turgor e hidratação cutânea.

O exame neurológico deve incluir a pesquisa de reflexos tendinosos profundos. A avaliação vascular requer palpação de pulsos e aferição da pressão arterial em todas as extremidades; pulsos diminuídos ou índice tornozelo-braquial reduzido sugerem isquemia e possível claudicação.

Sinais de Alerta e Interpretação dos Achados

Em pacientes com queixa de cãibras, os seguintes achados exigem investigação aprofundada:

  • Envolvimento de tronco ou membros superiores.
  • Alterações de reflexos (hiper ou hiporreflexia).
  • Fraqueza muscular, fasciculações ou atrofia.
  • Sinais de hipovolemia.
  • Déficits sensitivos em distribuição de nervo periférico, plexo ou raiz nervosa.
  • Sinais compatíveis com transtorno por uso de álcool.

Raciocínio Clínico

  • Cãibras Focais: Sugerem etiologia idiopática benigna, associação com exercício, alterações musculoesqueléticas, patologias do sistema nervoso periférico ou doenças degenerativas precoces (ex.: doença do neurônio motor). Hiporreflexia focal corrobora a suspeita de radiculopatia, plexopatia ou neuropatia periférica.
  • Cãibras Difusas: Especialmente se acompanhadas de tremores e hiperreflexia, sugerem causa sistêmica (ex.: hipocalcemia ionizada, doença do neurônio motor, induzida por fármacos ou transtorno por uso de álcool). A hiporreflexia generalizada pode indicar hipotireoidismo ou transtorno por uso de álcool, embora possa ser um achado fisiológico em idosos.
  • Exame Normal: Em contexto de história compatível, sugere cãibras idiopáticas benignas ou associadas ao exercício.

Exames Complementares

A solicitação de exames não é rotineira e deve ser guiada por achados clínicos anormais:

  • Laboratoriais: Glicemia, função renal e eletrólitos (incluindo cálcio e magnésio) devem ser avaliados em casos de cãibras difusas de etiologia desconhecida, sobretudo na presença de hiperreflexia. Na suspeita de tetania, solicitam-se gasometria arterial (para alcalose respiratória) e cálcio ionizado.
  • Neurofisiológicos e Imagem: A eletroneuromiografia é indicada se houver fraqueza muscular associada. A ressonância magnética (encéfalo e medula espinal) é reservada para casos com sinais de comprometimento do sistema nervoso central.

Tratamento e Prevenção

O manejo envolve o tratamento das condições de base identificadas.

Medidas Agudas

O alongamento passivo da musculatura afetada (ex.: dorsiflexão do pé para cãibras na panturrilha) promove alívio sintomático. Terapias térmicas, como aplicação de calor (banhos, compressas) ou frio (massagem com gelo), podem auxiliar na analgesia.

Estratégias de Prevenção

Medidas não farmacológicas recomendadas incluem:

  • Alongamento muscular suave pré-exercício e ao deitar.
  • Hidratação adequada, particularmente com reposição de potássio após esforço físico.
  • Cessação do tabagismo e evitação de estimulantes (cafeína, nicotina, efedrina, pseudoefedrina).

Técnica de Alongamento do Gastrocnêmio: Recomenda-se o posicionamento em pé, com um membro inferior à frente (joelho flexionado) e o outro estendido posteriormente (joelho reto e calcanhar no solo). O paciente pode apoiar-se em uma parede para equilíbrio. A flexão progressiva do joelho anterior intensifica o alongamento da cadeia posterior do membro oposto. A posição deve ser mantida por 30 segundos, repetida 5 vezes para cada lado.

Farmacoterapia

O uso profilático de medicamentos não é rotineiramente recomendado devido à eficácia limitada da maioria das substâncias (suplementos de cálcio, magnésio, benzodiazepínicos).

  • Quinino: Embora tenha demonstrado eficácia em alguns estudos, seu uso é desencorajado devido ao risco de efeitos adversos graves, como arritmias, trombocitopenia, púrpura trombocitopênica trombótica (PTT), síndrome hemolítico-urêmica (SHU) e reações de hipersensibilidade severas (3).
  • Mexiletina: Pode apresentar benefício (4), porém, sua relação risco-benefício é incerta devido a efeitos adversos como náuseas, tontura, tremor e potencial convulsígeno.

Cãibras noturnas:

Episódios de câimbras nas panturrilhas ou nos pés são ocorrências comuns em pacientes saudáveis, incidindo com maior frequência em indivíduos de meia-idade e idosos. O diagnóstico desses espasmos relacionados ao sono é eminentemente clínico, fundamentado na análise do histórico do paciente e na confirmação da ausência de sinais físicos patológicos ou incapacidades motoras.

Como estratégia preventiva, recomenda-se o alongamento da musculatura afetada por alguns minutos antes de se deitar. (2) A execução do alongamento imediatamente após o início da contração muscular oferece alívio imediato dos sintomas, sendo uma abordagem superior e preferível ao tratamento farmacológico.

Embora diversos agentes tenham sido testados historicamente — como suplementos de cálcio e magnésio, quinina, difenidramina, benzodiazepínicos e mexiletina —, a eficácia clínica tende a ser baixa. Além disso, o uso de substâncias como a quinina e a mexiletina apresenta riscos significativos de efeitos adversos. Por fim, a redução ou eliminação do consumo de cafeína e outros estimulantes simpáticos pode auxiliar no controle dos episódios.


Cãibras de calor:

As câimbras de calor são contrações musculares espasmódicas, dolorosas e involuntárias que acometem os músculos esqueléticos, tipicamente manifestando-se em indivíduos não aclimatados após atividade física intensa em ambientes quentes e úmidos. Embora comuns, é crucial diferenciá-las de outras etiologias de cãibras musculares e compreender os mecanismos subjacentes para um tratamento eficaz.

Definição e Características

As câimbras de calor (também conhecidas como câimbras musculares associadas ao exercício) são caracterizadas por contrações espasmódicas intermitentes, dolorosas e involuntárias dos músculos esqueléticos (1). Elas costumam ocorrer em um indivíduo não aclimatado que está em repouso após exercício vigoroso em um ambiente quente e úmido (1).

Em contraste, as câimbras que ocorrem em atletas durante o exercício geralmente duram mais tempo, são aliviadas por alongamento e massagem, e se resolvem espontaneamente (1).

É importante ressaltar que nem todas as câimbras musculares estão relacionadas ao exercício, e o diagnóstico diferencial inclui muitos outros distúrbios. Diversas medicações, miopatias, distúrbios endócrinos e traço falciforme são outras possíveis causas (1).


Fisiopatologia

O paciente com câimbra de calor tipicamente está profusamente diaforético (suando excessivamente) e repôs as perdas de líquido com muita água ou outros líquidos hipotônicos (1). Outros fatores predisponentes incluem ingestão insuficiente de sódio antes de atividade intensa no calor e falta de aclimatação ao calor, o que resulta em suor com alta concentração de sal (1).

A patogênese exata das câimbras do calor parece envolver uma deficiência relativa de sódio, potássio e líquidos a nível intracelular (1). Com a copiosa ingestão de líquido hipotônico, grandes quantidades de sódio perdidas no suor causam hiponatremia e hipocloremia, resultando em câimbras musculares devido à contração muscular dependente do cálcio (1). A depleção de potássio do corpo inteiro também pode ser observada durante o período de aclimatação ao calor (1). Rabdomiólise é muito rara com câimbras musculares associadas aos exercícios de rotina (1).


Tratamento

As câimbras do calor que não são acompanhadas por desidratação podem ser tratadas com soluções eletrolíticas disponíveis comercialmente (1).


Referências Bibliográficas

  1. Jameson JL, Fauci AS, Kasper DL, Hauser SL, Longo DL, Loscalzo J. Medicina Interna de Harrison. 20. ed. Porto Alegre: ArtMed; 2021. 3522 p.
  2. ALLEGRAEFF, J. M. et al. Stretching before sleep reduces the frequency and severity of nocturnal leg cramps in older adults: a randomised trial. Journal of Physiotherapy, v. 58, n. 1, p. 17-22, 2012. DOI 10.1016/S1836-9553(12)70068-1.