Carboidratos: Funções, Metabolismo e Aplicações no Desempenho Físico
Introdução
Os carboidratos são macronutrientes essenciais, compostos fundamentalmente por carbono, hidrogênio e oxigênio. Sua principal função biológica reside no fornecimento de substrato energético para as células, especialmente as do sistema nervoso central, que dependem exclusivamente da glicose para manter sua integridade e funcionalidade. Além disso, os carboidratos desempenham papéis cruciais na síntese hormonal e de neurotransmissores, na regulação da sensibilidade à insulina e na modulação da microbiota intestinal.
Classificação dos Carboidratos
Os carboidratos são classificados com base no número de unidades de sacarídeos que os compõem:
Monossacarídeos
Constituídos por uma única molécula com 5 a 6 átomos de carbono, raramente encontrados de forma livre na natureza. Incluem:
- Açúcares: glicose, galactose e frutose.
- Polióis (monossacarídeos hidrogenados): xilitol, manitol, sorbitol e eritritol.
Dissacarídeos
Formados pela união de dois monossacarídeos por ligações glicosídicas, os mais comuns são:
- Açúcares:
- Sacarose: frutose + glicose.
- Lactose: galactose + glicose.
- Maltose: glicose + glicose.
- Polióis (dissacarídeos hidrogenados): maltitol, isomalte e lactitol.
- Maltooligossacarídeos: maltodextrinas.
Oligossacarídeos
Caracterizados por 3 a 10 unidades de polímeros. Exemplos incluem:
- Rafinose.
- Estaquiose.
- Frutooligossacarídeo (FOS).
- Galactooligossacarídeo.
- Oligossacarídeos hidrogenados: hidrolisado de amido modificado.
Polissacarídeos
Compostos por mais de 10 unidades de polímeros. Destacam-se:
- Glicogênio: principal reserva energética em humanos.
- Amido: reserva energética de vegetais, presente em grânulos. Pode ser classificado em:
- Amilose.
- Amilopectina.
- Amidos modificados.
- Polissacarídeos não amidos: celulose, hemicelulose e pectinas.
- Polissacarídeos hidrogenados: poliglicitol e polidextrose hidrogenada.
Fibras Alimentares
As fibras alimentares são polímeros não digeríveis, compostos por oligossacarídeos ou polissacarídeos de glicose, frutose e/ou galactose. Podem ser classificadas em solúveis ou insolúveis:
- Fibras solúveis: Formam géis que retardam o trânsito intestinal e a captação de nutrientes.
- Fibras insolúveis: Aumentam a retenção hídrica nas fezes, promovendo maior volume e acelerando o trânsito intestinal.A microbiota intestinal é capaz de fermentar fibras, produzindo ácidos graxos de cadeia curta (acetato, butirato e propionato), que conferem benefícios à saúde (1).
Digestão e Absorção dos Carboidratos
A digestão dos carboidratos inicia-se na boca com a ação da amilase salivar, que possui atividade ótima em pH salivar e é inativada pelo pH estomacal. Apesar da inativação gradual no estômago, a amilase pode manter sua atividade por até uma hora, hidrolisando aproximadamente 5% do amido antes da completa mistura com as secreções gástricas (1, 3). Estudos recentes sugerem que 30-40% dos carboidratos podem ser digeridos na boca e estômago antes da neutralização do quimo (5). A prolongada mastigação, por exemplo, de um biscoito, resulta em um sabor mais adocicado devido à quebra de amidos em dissacarídeos na cavidade oral (5).
Ao sair do estômago e adentrar o duodeno, a acidez do quimo é neutralizada pelo bicarbonato pancreático, permitindo a continuidade do processo digestivo (5). No intestino delgado, a alfa-amilase pancreática prossegue a digestão dos amidos em polímeros menores de glicose e maltose, de forma que a digestão é quase completa ao atingir o íleo. As enzimas da borda em escova (lactase, sucrase e maltase) realizam a hidrólise final dos dissacarídeos e polissacarídeos residuais (1, 3, 5).
A absorção de monossacarídeos ocorre por meio de transportadores específicos:
- Glicose e Galactose: Absorvidas via SGLT-1 (sodium glucose transporter) na membrana apical do enterócito, necessitando da entrada concomitante de sódio (1, 5).
- Frutose: Absorvida pelo GLUT5 via difusão facilitada e transportada para a corrente sanguínea pelo GLUT2 (1, 5).A glicose, uma vez no enterócito, é transportada para a corrente sanguínea também pelo GLUT2. É importante destacar que a quantidade de transportadores não é estática, adaptando-se ao padrão alimentar do indivíduo (5).
As fibras dietéticas, contendo celulose, são resistentes às enzimas digestivas e podem ser excretadas nas fezes ou fermentadas pela microbiota do intestino grosso (5). O teor de fibras, dependendo da quantidade, pode influenciar o peristaltismo intestinal, retardar o esvaziamento gástrico e impactar a absorção de carboidratos, podendo gerar desconforto.
Metabolismo dos Carboidratos
No período pós-prandial, o aumento da glicose plasmática estimula as células beta pancreáticas a secretar insulina, um efeito que pode persistir por 2 a 3 horas (1). A insulina promove a translocação do GLUT4 em adipócitos e células musculoesqueléticas, além de inibir a produção hepática endógena de glicose (1). O fígado capta a glicose via GLUT2 e a armazena como glicogênio, servindo como reserva energética em casos de hipoglicemia (1).
Outros mecanismos de controle da insulinemia envolvem as incretinas (hormônios gastrointestinais produzidos durante a digestão), como o Peptídeo Inibitório Gastrintestinal (GIP) e o Peptídeo Semelhante ao Glucagon (GLP-1) (1). Em contrapartida, a redução da glicemia estimula a secreção de glucagon pelas células alfa pancreáticas, que inibe a captação celular de glicose para manter os níveis circulantes estáveis (1).
As principais formas de armazenamento de glicose são o glicogênio hepático (100-120g) e muscular (300-700g, variando com o músculo) (1). Cada grama de glicogênio é estocada no músculo com 3-5 gramas de água (1).
- Glicogênese: Processo de formação de glicogênio, regulado pela enzima glicogênio sintase (1).
- Lipogênese de novo: Ocorre em resposta ao excesso de ATP e acúmulo de acetil-CoA na célula, que é convertida em citrato. Este estimula enzimas como a acetil-CoA liase e a ácido graxo sintase, promovendo a formação de ácidos graxos (1).
Índice Glicêmico (IG) e Carga Glicêmica (CG)
O Índice Glicêmico (IG) representa a resposta glicêmica induzida por uma porção de alimento contendo 50g (ou 25g em alguns casos) de carboidratos disponíveis, avaliada em um período de 2 horas. É expresso percentualmente em comparação a um alimento padrão (solução de glicose ou pão branco) (2). O IG reflete a qualidade dos carboidratos de um alimento (2). Na prática clínica, fatores como modo de preparo, grau de maturação, processamento, composição nutricional, perfil da refeição, velocidade de mastigação e taxa de esvaziamento gástrico influenciam o IG.
A classificação do IG é:
- IG Baixo: <56
- IG Médio: 56-69
- IG Alto: >69
A Carga Glicêmica (CG) classifica o efeito global de uma porção padrão de um alimento na resposta glicêmica, independentemente da quantidade de carboidrato (2). A CG é considerada um parâmetro qualitativo superior, pois integra a quantidade de carboidrato na porção, ao contrário do IG que apenas reflete a velocidade de absorção (2). O IG avalia o potencial de um alimento aumentar a glicemia, classificando a velocidade de absorção e conversão em glicose sanguínea; carboidratos com IG elevado apresentam rápida decomposição. A CG indica os efeitos fisiológicos pós-ingestão de carboidratos, sendo calculada pelo IG multiplicado pela quantidade de carboidrato no alimento, dividido por 100 (1).
A classificação da CG é:
- CG Baixa: <11
- CG Média: 11-19
- CG Alta: >19
É crucial entender que a velocidade de absorção de um carboidrato não se correlaciona diretamente com a quantidade de carboidratos no alimento. Assim, um alimento pode apresentar IG alto e CG baixa. Estudos indicam que alimentos com baixo IG pré-exercício de resistência podem melhorar o desempenho atlético em comparação com aqueles de alto IG (1).
Carboidratos no Exercício Físico
Influência do Exercício Físico na Captação de Glicose
Tanto a insulina quanto o exercício físico estimulam a translocação do GLUT4, e seus efeitos no músculo esquelético são aditivos/sinérgicos (1).
Utilização Energética Durante o Exercício
Em repouso, a energia é predominantemente derivada da oxidação de lipídios (1).
- Exercícios de baixa intensidade: A maior parte da energia muscular provém da oxidação de ácidos graxos livres (1).
- Exercícios de moderada intensidade: Triacilgliceróis de reservas musculares também contribuem, e a oxidação de carboidratos fornece cerca de metade da energia total (1).
- Exercícios de alta intensidade: A oxidação de ácidos graxos diminui, e a oxidação de carboidratos supre aproximadamente dois terços da demanda energética total (1). As principais fontes de carboidratos para o músculo são a glicose circulante, o glicogênio muscular e o glicogênio hepático (1).
A produção anaeróbia de ATP pela glicólise não é suficiente para sustentar a atividade muscular contínua por longas durações (1). A produção aeróbia de glicose é consideravelmente mais eficiente (1). A deficiência de carboidratos durante atividades prolongadas pode levar à hipoglicemia e à redução da oferta de glicose para o cérebro, além de aumentar a cortisolemia, predispondo à imunossupressão e infecções do trato respiratório superior (2). Em exercícios submáximos prolongados, a glicemia sanguínea pode suprir 20-50% da demanda energética (4).
Favorecer a biogênese mitocondrial é importante em esportes com exercícios intermitentes para otimizar a produção de ATP ou, em provas de longa duração, para aumentar os estoques de glicogênio e ativar enzimas do metabolismo oxidativo anaeróbio (1). A ingestão de carboidratos deve assegurar um aporte energético adequado, considerando intensidade, volume, frequência, tempo de recuperação e o contexto (treino ou competição), sendo o cálculo por quilograma de massa corporal mais recomendado do que por percentual da ingestão energética diária.
Recomendações Nutricionais e para Exercícios
- DRI (Dietary Reference Intakes): 45-65% do Valor Energético Total (VET).
- Pré-treino:
- 3-4 horas antes: 1-4g de CHO/kg para exercícios com duração superior a 90 minutos (1, 2).
- 30-60 minutos antes: Bebidas à base de carboidratos podem ser benéficas (1).
- Durante o Exercício:
- Até 1 hora de duração: O enxágue bucal com carboidratos já oferece benefícios (1).
- 2-3 horas de duração: Ingestão de até 60g/hora de um único tipo de carboidrato (limite de absorção) (1).
- Ultra resistência (acima de 3 horas): 90g/hora, utilizando duas fontes de CHO (ex: 60g glicose + 30g frutose) para otimizar a absorção por múltiplos transportadores (1).
- Pós-exercício: Recuperação mais rápida do glicogênio com 2g/kg em até 30 minutos (1). Para intervalos inferiores a 8 horas entre sessões, o ACSM recomenda 1-1.2g/kg/h nas 4 horas seguintes, com variação conforme a aceitação do paciente (2).
Suplementação de Carboidratos
Suplementos sólidos ou em barras podem causar maior desconforto gastrointestinal em comparação com bebidas ou géis (1). A taxa de esvaziamento gástrico é uma barreira crucial na disponibilidade de carboidratos durante o exercício, influenciada por fatores como tipo de preparação, osmolalidade, temperatura (ideal 10-14°C), volume (ideal 150-200mL) e intensidade do exercício (VO2max >75% inibe o fluxo sanguíneo intestinal) (4).
Durante o exercício, devem ser priorizados carboidratos de rápida absorção, atentando-se à velocidade de absorção intestinal de 1g/min de glicose (transportada pelo SGLT1), que limita a ingestão a 60g/hora de glicose. Para quantidades maiores, 60g de glicose + 30g de frutose (absorvida pelo GLUT-5) devem ser ofertados (2).
Velocidade de Degradação do Carboidrato
- Dissacarídeos de rápida digestão: sacarose, maltose e lactose.
- Dissacarídeos de lenta digestão: isomaltulose.
- Oligossacarídeos de rápida digestão: dextrina.
- Oligossacarídeos de lenta digestão: dextrina resistente.
- Polissacarídeos: amido (rápida e lenta digestão).
Opções de Suplementos
- Dextrose: sinônimo de glicose, não requer digestão para absorção e possui alto IG (2).
- Maltodextrina: carboidrato composto exclusivamente por glicose, de rápida absorção e alto IG, derivado da hidrólise parcial do amido (1, 2). O enxágue bucal com maltodextrina pode melhorar o desempenho (1).
- Waxy maize, isomaltulose, trealose, palatinose, galactose.
- Frutose: carboidrato de absorção mais lenta e baixo IG. Pode causar desconforto gastrointestinal e diarreia em algumas doses (1, 2). É utilizada em produtos para atividades longas ou recuperação pós-esforço.
Loading / Supercompensação de Carboidratos
A supercompensação de glicogênio é uma técnica que visa aumentar o armazenamento de carboidratos nos músculos através da manipulação do treinamento e da dieta na semana que antecede um evento (1). Geralmente, tem duração de 3 a 6 dias (1). Inicia-se com uma dieta hipoglicídica e exercícios de alta intensidade por 3 dias para depletar o glicogênio muscular. Nos 3 dias subsequentes, o aporte de CHO é aumentado para 8-12g/kg, com redução ou cessação total da atividade física (1).
Observações: Pode gerar um aumento de 1% a 2% no peso do atleta (1). Não é recomendada para provas de curta duração (1).
Dias antes da prova | Exercício | Dieta |
6 | 90min. de exercício | 5g/kg de carboidratos |
5 | 40min. de exercício | 5g/kg de carboidratos |
4 | 40min. de exercício | 5g/kg de carboidratos |
3 | 20min. de exercício | 10g/kg de carboidratos |
2 | 20min. de exercício | 10g/kg de carboidratos |
1 | Descanso | 10g/kg de carboidratos |
Enxágue Bucal com Carboidratos
Utilizado em exercícios de moderada a alta intensidade com duração entre 45 e 75 minutos (1). Especula-se que seus efeitos estejam mais relacionados a modulações do sistema nervoso central do que a efeitos metabólicos (1). A absorção de carboidratos na cavidade oral ativa centros nervosos envolvidos no controle da fadiga, diminuindo a percepção subjetiva de esforço (2). Essa modulação das respostas cerebrais ocorre a partir de percepções gustativas, levando ao aumento da excitabilidade de vias corticomotoras (1). O volume recomendado é de 25mL por bochecho, realizado por 10 segundos a cada 5 a 15 minutos.
Carboidratos Pós-Exercício
A necessidade de consumo de carboidratos pós-exercício varia conforme o intervalo entre as sessões de treinamento. Para intervalos inferiores a 8 horas, o ACSM (American College of Sports Medicine) recomenda a ingestão de 1 a 1,2 g/kg/h nas 4 horas subsequentes, ajustando o volume da refeição à aceitação do paciente (2).
Devem ser priorizados carboidratos de alto IG, tanto na forma de suplementos quanto de alimentos (2). A primeira oferta é recomendada nos primeiros 30 minutos após o término do exercício para otimizar a reposição de glicogênio (2). A ressíntese de glicogênio muscular é determinada principalmente pela quantidade de carboidrato exógeno consumido. A quantidade de 1,2 g/kg/h parece ser suficiente para maximizar a síntese de glicogênio, enquanto quantidades superiores não demonstram efeitos adicionais no armazenamento (2).
A ressíntese de glicogênio é mais rápida nas primeiras duas horas pós-exercício devido ao aumento da captação de glicose pela musculatura, resultado da maior sensibilidade à insulina e da concentração de transportadores de glicose na membrana dos miócitos (2). É importante notar que o uso do glicogênio é tecido-específico; portanto, se o mesmo grupo muscular não for utilizado novamente em um curto período, a urgência na reposição pode ser menor (2).
Efeito do Carboidrato na Síntese Proteica Muscular Esquelética
A principal função do carboidrato está centrada no controle das concentrações de glicogênio muscular e no rendimento físico, e não diretamente no metabolismo proteico muscular (2).
Princípios para a Periodização de Carboidratos
Dentre as adaptações musculares induzidas pelo exercício físico, destaca-se o aumento da quantidade e densidade mitocondrial, visando, por exemplo, maior utilização de ácidos graxos como fonte de energia (2). Um dos principais estímulos para a biogênese mitocondrial é a redução dos níveis de energia nas células musculares exercitadas. Isso pode ser alcançado pelo aumento do volume ou da intensidade das atividades, ou por meios dietéticos (2).
Entre os meios dietéticos, incluem-se:
- Exercício em jejum.
- Restrição de carboidratos (moderada ou severa), configurando o conceito “train-low, compete-high”.
- Redistribuição diária da oferta, exemplificada pela estratégia “sleep-low” (dormir com baixa disponibilidade de carboidratos) (2).
Considerações Acerca da Periodização de Carboidratos
Quanto mais treinado e condicionado o indivíduo, menos adaptável sua musculatura se torna. A periodização de carboidratos (jejum, train-low, sleep-low) pode ser uma estratégia viável dentro da periodização de treinamento quando o objetivo é aumentar o volume de treinamento, como para completar uma prova longa sem foco em tempo. Quando a prioridade é a intensidade, um alto consumo de carboidratos ao longo do dia, eventualmente com o emprego da estratégia sleep-low, é mais oportuno (2).
Referências Bibliográficas
- LANCHA JR, A. H.; ROGERI, P. S.; PEREIRA-LANCHA, L. O. Suplementação Nutricional no Esporte. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019. 266 p.
- LANCHA JR, A. H.; LONGO, S. Nutrição do Exercício Físico ao Esporte. 1. ed. São Paulo: Manole, 2019. 262 p.
- SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de Alimentação, Nutrição & Dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.
- RIBAS FILHO, D.; SUEN, V. M. M. Tratado de Nutrologia. 2. ed. Santana de Parnaíba: Manole, 2019. 646 p.
- JEUKENDRUP, A. E.; GLEESON, M. Nutrição no Esporte – Diretrizes Nutricionais e Bioquímica e Fisiologia do Exercício. 3. ed. São Paulo: Manole, 2021. 559 p.