Abordagem Multidisciplinar nas Hepatopatias Crônicas
Introdução
As hepatopatias crônicas englobam um espectro de condições que afetam o fígado de forma prolongada, culminando frequentemente em cirrose e suas diversas complicações. A cirrose hepática, antes considerada irreversível, atualmente demonstra potencial para reversão em estágios iniciais com tratamento adequado (1). Este documento visa fornecer uma visão abrangente sobre a fisiopatologia, manifestações clínicas, diagnóstico e estratégias terapêuticas e nutricionais no manejo de pacientes hepatopas, com foco na otimização da qualidade de vida e na redução da morbimortalidade.
Fisiopatologia das Hepatopatias
A fisiopatologia das hepatopatias crônicas, especialmente aquelas induzidas por álcool, envolve um complexo desequilíbrio metabólico. O consumo de álcool leva a um aumento da mobilização de ácidos graxos, resultando em maior síntese e menor oxidação desses, o que culmina no acúmulo de triglicerídeos no fígado. Esse processo é mediado, em parte, pelo desequilíbrio do sistema NAD/NADH+, uma vez que o etanol promove a utilização do hidrogênio proveniente de sua metabolização na produção de energia pelas mitocôndrias.
A cirrose hepática representa o estágio final de uma agressão crônica ao fígado, caracterizada histologicamente pela presença de fibrose e formação difusa de nódulos, alterando a arquitetura normal do órgão (1). Embora historicamente vista como irreversível, atualmente reconhece-se que o tratamento em estágios iniciais pode ser benéfico, podendo inclusive levar à reversão da fibrose (1).
Desnutrição em Hepatopatias
Tanto o consumo de álcool quanto as infecções virais podem induzir um estado de hipercatabolismo em pacientes hepatopatas (1). A intolerância à glicose e o aumento da oxidação de lipídios e aminoácidos resultam em perdas energéticas significativas e consequente depleção dos depósitos de gordura e proteínas (1).
Pacientes com hepatopatias crônicas frequentemente exibem ingestão dietética inadequada e alterações em indicadores antropométricos, bioquímicos e clínicos, evidenciando um comprometimento nutricional substancial (1). A desnutrição é prevalente em cerca de 20% dos pacientes com doença hepática compensada, e em mais de 80% dos casos de cirrose descompensada (1).
Manifestações Clínicas e Complicações
Os pacientes com hepatopatias podem ser classificados clinicamente como compensados ou descompensados, sendo a descompensação definida pela presença de ascite, encefalopatia hepática e/ou icterícia (1). As principais complicações da cirrose incluem hipertensão portal, encefalopatia hepática, ascite e carcinoma hepatocelular (1).
Hipertensão Portal
A hipertensão portal é caracterizada pelo aumento crônico da pressão venosa no sistema porta, decorrente da interferência no fluxo sanguíneo venoso hepático (1). Clinicamente, manifesta-se por hepatoesplenomegalia, ascite e uma rede venosa visível na parede abdominal (1).
A hemorragia por varizes esofagogástricas é a complicação mais comum da hipertensão portal e uma das principais causas de mortalidade entre os pacientes (1). Episódios hemorrágicos tendem a ser graves, cursando com importantes manifestações hemodinâmicas e frequentemente exigindo reposição volêmica com sangue e derivados (1).
Encefalopatia Hepática
A encefalopatia hepática (EH) consiste em um conjunto de alterações neuropsíquicas de origem metabólica, potencialmente reversíveis, que se manifestam em pacientes com doenças hepáticas graves (1). O diagnóstico da EH é fundamentalmente clínico, abrangendo uma gama de gravidade desde manifestações subclínicas até coma profundo (1).
A EH pode ser classificada de acordo com a doença hepática de base: tipo A (associada à falência hepática aguda), tipo B (associada a bypass portossistêmico) e tipo C (associada à cirrose e hipertensão portal) (1). Em relação aos sintomas neurológicos, é classificada como episódica (aguda), persistente (crônica) e mínima (subclínica) (1).
Na encefalopatia, ocorre uma progressiva lentificação da atividade neuronal. Diversas teorias buscam explicar esse processo, seja por deficiência de substâncias neuroestimuladoras (ureia, falsos neurotransmissores) ou por excesso de substâncias depressoras (teoria do GABA) (1). Contudo, nenhuma dessas teorias, isoladamente, elucidou de forma satisfatória a gênese da encefalopatia (1).
A amônia é o fator cujo envolvimento é conhecido há mais tempo e ainda parece ser o mais relevante (1). Origina-se de fontes endógenas (desaminação de aminoácidos em músculos, cérebro, fígado e rim) e exógenas, sendo esta última a de maior importância (1). A amônia exógena é sintetizada no cólon direito, a partir da proteólise de alimentos, proteínas sanguíneas (em casos de hemorragias digestivas) e hidrólise da ureia sanguínea que atravessa a mucosa intestinal (1).
Considerando que a absorção intestinal de compostos nitrogenados está diretamente ligada ao aparecimento ou agravamento da encefalopatia hepática, medidas que visam bloquear essa absorção ou modificar a microbiota intestinal são indicadas, assim como a modificação proteica (1). A lavagem intestinal com neomicina, lactulose ou lactose, ou sulfato de magnésio, deve ser realizada especialmente em pacientes obstipados ou, eventualmente, em casos de hemorragia digestiva, com cautela para evitar espoliação de água e eletrólitos (1).
Ascite
O acúmulo de líquido na cavidade peritoneal em pacientes com cirrose hepática resulta da intensa retenção renal de sódio, consequência da hipertensão portal (1). Independentemente da sua gênese, o surgimento da ascite em hepatopatas acarreta uma série de modificações hemodinâmicas e predispõe o paciente a diversas complicações (1).
É crucial compreender que o líquido ascítico se encontra em equilíbrio dinâmico com o compartimento intravascular e que, embora a passagem do líquido intravascular para a ascite seja praticamente livre, a quantidade de líquido que pode ser mobilizada da ascite para o compartimento intravascular não deve exceder 900 mL a cada 24 horas (1).
Geralmente, terapias farmacológicas e não farmacológicas são empregadas para o manejo da ascite e da retenção hídrica, sendo o controle da ingestão de sódio e o uso de diuréticos condutas essenciais no tratamento (1). Estudos recentes demonstraram benefícios na taxa de mortalidade, em casos de ascite de início recente, com a suplementação de albumina (1).
Carcinoma Hepatocelular (CHC)
Em pacientes cirróticos, a incidência de carcinoma hepatocelular (CHC) varia entre 3% e 5% (1). Pacientes de risco devem ser submetidos a acompanhamento por meio de ultrassonografia abdominal, com intervalos de 6 a 12 meses (1). Recomenda-se também a verificação dos níveis séricos de alfa-fetoproteína, uma glicoproteína sintetizada na fase embrionária cuja concentração diminui após o nascimento, mas que pode estar elevada em alguns tumores malignos (1). Este procedimento é recomendado em conjunto com a ultrassonografia devido à baixa especificidade da alfa-fetoproteína isoladamente (1).
A ressecção e o transplante hepático são os tratamentos indicados para o CHC (1). A ressecção hepática é indicada para pacientes com função hepática preservada, enquanto o transplante é recomendado para aqueles com CHC precoce, cirrose e hipertensão portal (1).
Avaliação Nutricional Bioquímica
A acurácia da avaliação do estado nutricional torna-se desafiadora na doença hepática crônica devido à presença de retenção hídrica e aos efeitos da função hepática comprometida sobre a síntese de proteínas plasmáticas (1).
A albumina, considerada um parâmetro fidedigno na avaliação nutricional e sintetizada no fígado, tem sua síntese diminuída e seu catabolismo acelerado em pacientes cirróticos, reduzindo a confiabilidade do teste para avaliação nutricional nesse grupo (1).
O hematócrito e a hemoglobina, por outro lado, são bons indicadores nutricionais mesmo em hepatopatas, pois independem do metabolismo hepático. Contudo, podem apresentar-se alterados em casos de hipertensão portal grave acompanhada de esplenomegalia maciça e hiperesplenismo, assim como na presença de hemorragia digestiva (1).
Conduta Clínica e Terapêutica
Transplante Hepático
O transplante de fígado é o tratamento definitivo indicado em casos de insuficiência hepática aguda ou crônica, hepatocarcinoma e sintomas específicos decorrentes de funcionamento hepático precário de caráter irreversível, com falhas comprovadas na terapêutica clínica (1). O índice médio de sobrevida em 5 anos é de até 70%, com uma significativa melhora na qualidade de vida dos pacientes, sendo que mais de 85% deles retomam uma vida ativa e produtiva em tempo integral (1).
Recomendações Nutricionais Específicas
Aminoácidos de Cadeia Ramificada (BCAA)
A suplementação de aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA) demonstrou auxiliar na retenção de nitrogênio em pacientes hepatopatas, sendo, portanto, sugerida no tratamento de pacientes cirróticos e com encefalopatia hepática (1). Esta estratégia baseia-se na observação de que pacientes cirróticos podem apresentar um desequilíbrio na relação entre BCAA e aminoácidos de cadeia aromática (fenilalanina, triptofano, tirosina, entre outros) (1). A reposição dos BCAA por via oral, enteral ou parenteral diminuiria esse desequilíbrio e dificultaria a utilização da tirosina como precursor de falsos neurotransmissores (1).
É fundamental ressaltar que a restrição proteica não é recomendada, exceto por um curto período de tempo na ocorrência de hemorragia gastrointestinal (1). Em casos de encefalopatia hepática graus III ou IV, é mais indicada a utilização de nutrição enteral exclusiva com solução rica em BCAA na proporção de 3:1 (1).
Gorduras
A restrição de gorduras na dieta de pacientes hepatopatas é injustificável, pois além de não possuir base científica, tende a agravar o déficit nutricional (1). Exceções podem ocorrer em pacientes colestáticos; no entanto, mesmo nesses casos, a utilização de dietas com maior teor de triglicerídeos de cadeia média (TCM), presentes em óleos como o de coco e babaçu, ou soluções de TCM para o preparo dos alimentos, pode ser alcançada (1).
Sódio
Em relação ao sódio, a restrição não deve ser inferior a 2000 mg/dia, pois níveis mais baixos tornariam os alimentos impalatáveis, resultando em déficit calórico e agravando a desnutrição frequentemente presente nesse grupo de pacientes (1). Além disso, a restrição excessiva de sódio não adiciona eficácia ao tratamento com diuréticos e pode levar a uma maior incidência de insuficiência renal induzida por diuréticos e hiponatremia (1). É importante ressaltar que a restrição hídrica deve ser implementada apenas em pacientes com concentração sérica de sódio inferior a 120 mEq/L (1).
Probióticos
A suplementação de probióticos, prebióticos e simbióticos é indicada na prevenção e no tratamento da encefalopatia hepática (1).
Zinco
A deficiência de zinco foi observada em pacientes cirróticos, e a suplementação parece diminuir o nível sérico de amônia (1).
Manganês
Recomenda-se o uso de quelantes de manganês para aliviar os sintomas da encefalopatia (1).
Referências Bibliográficas
- SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de alimentação, nutrição & dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.