A Coenzima Q10 na Prática Clínica: Evidências e Aplicações


A Coenzima Q10 na Prática Clínica: Evidências e Aplicações


Introdução

A coenzima Q10 (CoQ10), também conhecida como Ubiquinona, é um composto lipossolúvel essencial, sintetizado endogenamente por mamíferos e plantas. Ela atua como um antioxidante intracelular e é fundamental no processo de produção de energia celular. A forma predominante da CoQ10 no organismo é o ubiquinol (3). Este documento técnico-científico tem como objetivo apresentar informações concisas sobre a fisiologia, recomendações de uso, segurança e aplicações clínicas da CoQ10, embasadas nas evidências disponíveis.


Fisiologia e Mecanismo de Ação

A CoQ10 desempenha um papel crucial como carreador de elétrons na cadeia respiratória mitocondrial, sendo indispensável para a produção de ATP (3). Dessa forma, a CoQ10 influencia a função de todas as células do corpo, especialmente aquelas com alta demanda energética (4), como as células do fígado, coração e rins (5).

Além de sua função bioenergética, a CoQ10 é vital na proteção contra o dano oxidativo causado pelos radicais livres, preservando a integridade das mitocôndrias, da membrana fosfolipídica e das lipoproteínas de baixa densidade (LDL-C) (2). A deficiência de CoQ10 tem sido associada a diversas desordens neurodegenerativas e outras patologias (4). Embora a produção endógena ocorra, a CoQ10 também pode ser obtida através da dieta, sendo as fontes animais as mais ricas (5).


Conduta Clínica e Recomendações de Suplementação

Posologia e Administração

Para a obtenção de efeitos terapêuticos da CoQ10, um período de 10 semanas de suplementação é geralmente necessário (2). Recomenda-se a administração de CoQ10 na forma solúvel, devido à sua maior biodisponibilidade e melhor absorção, resultando em um aumento mais significativo na concentração plasmática (2). As doses diárias sugeridas variam de 90 a 200 mg, administradas uma vez ao dia, preferencialmente junto a uma refeição. Doses mais baixas podem apresentar melhor custo-benefício.

Segurança e Efeitos Adversos

A ingestão diária aceitável (ADI) estimada para a CoQ10 é de 12 mg/kg/dia (3). Em geral, a CoQ10 é bem tolerada, com relatos de efeitos colaterais leves, como náuseas, irritações cutâneas, prurido e irritabilidade (3). Um cuidado especial deve ser tomado em pacientes com prejuízo hepático, pois a metabolização inadequada da CoQ10 pode levar ao seu acúmulo no organismo (4).

Interações Medicamentosas

É relevante destacar a interação entre a CoQ10 e medicamentos inibidores da enzima HMG-CoA redutase, como as estatinas (lovastatina, pravastatina). O uso dessas drogas, prescritas para a redução do colesterol, pode resultar na diminuição dos níveis de CoQ10 (4).


Aplicações Clínicas da Coenzima Q10

Envelhecimento

Com o avanço da idade, observa-se um aumento na produção de citocinas pró-inflamatórias e uma redução na síntese endógena de CoQ10. A suplementação pode auxiliar na melhora desse quadro (2).

Fibromialgia

Evidências sugerem que a CoQ10 pode contribuir para a redução dos sintomas da fibromialgia. A forma solúvel da CoQ10 é preferível devido à sua absorção superior (2, 3).

Doenças Cardiovasculares (DCV)

No miocárdio, a CoQ10 tem sido empregada terapeuticamente para o tratamento de DCV e para promover a recuperação pós-cirurgia cardíaca (6). Em pacientes com DCV, a suplementação de CoQ10 demonstrou benefícios, incluindo melhora do metabolismo oxidativo, aumento da capacidade de exercício e atuação como antioxidante (6).

Inflamação

A CoQ10 desempenha um papel fundamental na respiração mitocondrial e na produção de ATP (2). Estudos em animais e em humanos indicam que a suplementação de CoQ10 pode diminuir marcadores inflamatórios como a proteína C reativa (CRP), interleucina-6 (IL-6) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) (2). Embora uma meta-análise tenha encontrado redução significativa apenas nos níveis de TNF-α (1), postula-se que o mecanismo anti-inflamatório da CoQ10 envolve a diminuição da expressão de NF-κβ (2), um fator de transcrição ativado por espécies reativas de oxigênio e responsável pelo aumento da expressão de marcadores como TNF-α e IL-6 (1, 2).

Perfil Lipídico

A CoQ10 é considerada um referencial no tratamento da peroxidação lipídica. Uma meta-análise recente demonstrou que a suplementação de CoQ10 reduziu as concentrações plasmáticas de lipoproteína (a), um carreador de fosfolipídios oxidados implicado na exacerbação do processo inflamatório (2). A modulação do perfil lipídico pela CoQ10 representa uma oportunidade adicional para reduzir o risco cardiovascular global (2).

Diabetes

Um estudo indicou que a suplementação de 200 mg/dia de CoQ10 por 12 semanas foi capaz de melhorar a hemoglobina glicada (HbA1C), além de aprimorar a função endotelial e a pressão sanguínea (4). A CoQ10 pode também melhorar a resistência à insulina através da otimização da função das células beta pancreáticas, consequentemente diminuindo a necessidade de insulina em pacientes diabéticos (4).

Câncer

O mecanismo associado à ação da CoQ10 no câncer é atribuído à melhora do sistema imune e do sistema antioxidante.

Enxaqueca

Existe uma base científica sólida que associa a enxaqueca a desordens mitocondriais (4). Alguns estudos revelaram prejuízos no metabolismo energético em pacientes com enxaqueca. A suplementação de 150 mg/dia de CoQ10 resultou em uma redução de 50% na frequência de dias com cefaleia, independentemente da presença de aura (4).


Coenzima Q10 e Estatinas

O mecanismo de ação das estatinas, ao inibir a via da HMG-CoA redutase, interfere na produção endógena de CoQ10 (5). Embora as concentrações sanguíneas de CoQ10 diminuam em usuários de estatinas, a relevância biológica desse efeito ainda não está completamente elucidada (5). A redução da CoQ10 no tecido muscular também foi observada, mas não de forma unânime, e não há provas conclusivas de que essa diminuição seja a única ou principal causa dos sintomas musculares associados às estatinas (SAMS) (5). Fatores como a baixa prática de atividade física, comum em usuários de estatinas, e a própria SAMS, que pode levar à redução da atividade física, podem influenciar os níveis de CoQ10 (5). Um estudo demonstrou que a presença de dores musculares em pacientes utilizando estatinas não foi alterada com o uso de CoQ10 (5). Assim, alguns autores sugerem o uso de CoQ10 em pacientes que acreditam em seus benefícios, agindo possivelmente como um efeito placebo (5).


Coenzima Q10 e Desempenho Esportivo

Apesar de alegações sobre a capacidade da CoQ10 em melhorar o VO2max, o desempenho e reduzir a fadiga, a literatura científica atual não apresenta evidências robustas que corroborem essas afirmações (6). Poucos estudos investigaram o efeito da CoQ10 em atletas, e nenhuma alteração significativa foi observada no VO2max, no desempenho ou nos níveis de lactato sanguíneo em cargas de trabalho submáximas (6). Uma ingestão de 120 mg/dia de CoQ10 por 20 dias resultou em elevação das concentrações plasmáticas, mas não alterou a concentração muscular de CoQ10 (6). Se a suplementação não é capaz de alterar a concentração muscular, é improvável que gere efeitos sobre variáveis relacionadas ao desempenho (6). Adicionalmente, há indícios de que a CoQ10 pode, ironicamente, produzir efeitos negativos, potencialmente aumentando a produção de radicais livres durante exercícios de alta intensidade, em um ambiente de abundância de íons de hidrogênio intracelular (6).


Referências Bibliográficas

  1. Zhai, J.; Bo, Y.; Lu, Y.; Liu, C.; Zhang, L. Effects of coenzyme Q10 on markers of inflammation: A systematic review and meta-analysis. PLoS One, v. 12, n. 1, p. 1–11, 2017.
  2. Fan, L. et al. Effects of coenzyme Q10 supplementation on inflammatory markers: A systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Pharmacological Research, v. 119, p. 128–136, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1016/j.phrs.2017.01.032.
  3. Hidaka, T. et al. Safety assessment of coenzyme Q10 (CoQ10). Food and Chemical Toxicology, v. 32, p. 199–208, 2008.
  4. Garrido-Maraver, J. Clinical applications of coenzyme Q10. Frontiers in Bioscience, v. 19, n. 4, p. 619, 2014. Disponível em: https://fbscience.com/Landmark/articles/10.2741/4231.
  5. Zaleski, A. L.; Taylor, B. A.; Thompson, P. D. Coenzyme Q10 as Treatment for Statin-Associated Muscle Symptoms—A Good Idea, but…. Advances in Nutrition, v. 9, n. 4, p. 519S-523S, 2018. Disponível em: https://academic.oup.com/advances/article/9/4/519S/5055942.
  6. Jeukendrup, A. E.; Gleeson, M. Nutrição no esporte – Diretrizes nutricionais e bioquímica e fisiologia do exercício. 3. ed. São Paulo: Manole, 2021. 559 p.

Deixe um comentário0