Colelitíase: Epidemiologia, Diagnóstico, Fisiopatologia e Abordagens Terapêuticas


Colelitíase: Epidemiologia, Diagnóstico, Fisiopatologia e Abordagens Terapêuticas


Introdução

A colelitíase, ou formação de cálculos biliares, é uma condição gastrointestinal comum que afeta milhões de indivíduos em todo o mundo. Caracterizada pela presença de concreções na vesícula biliar, sua epidemiologia, fisiopatologia complexa e diversas manifestações clínicas exigem uma compreensão aprofundada para o diagnóstico e manejo adequados.


Epidemiologia

A incidência de cálculos biliares aumenta progressivamente com a idade, sendo mais pronunciada após os 50 anos (1). Um estudo do National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES) revelou uma prevalência de 7,9% em homens e 16,6% em mulheres (1), evidenciando uma maior suscetibilidade no sexo feminino.


Diagnóstico

O diagnóstico da colelitíase baseia-se em métodos de imagem e achados laboratoriais:

Métodos de Imagem

  • Ultrassonografia da Vesícula Biliar: É o método de escolha, altamente confiável para detectar colelitíase e substituiu a colecistografia oral (1). Cálculos de apenas 1,5 mm de diâmetro podem ser identificados com confiabilidade, desde que critérios rigorosos sejam empregados (1). Os percentuais de resultados falso-negativos e falso-positivos na ultrassonografia para colelitíase oscilam entre 2-4% (1).
    • Lama Biliar: Representada por material de baixa ecogenicidade que forma uma camada na porção mais baixa da vesícula biliar. Esta camada se desloca com as mudanças posturais, mas, diferentemente dos cálculos, não produz sombreamento acústico, o que permite sua distinção (1). A ultrassonografia também pode ser usada para avaliar a função de esvaziamento da vesícula.
  • Radiografia Simples do Abdome: Pode detectar cálculos biliares que contenham cálcio suficiente para serem radiopacos (10-15% dos cálculos de colesterol e cerca de 50% dos cálculos pigmentares) (1).
  • Colecistografia Oral: Embora historicamente útil, atualmente é considerada obsoleta no diagnóstico de cálculos biliares (1).

Alterações Laboratoriais

Níveis elevados de bilirrubina sérica e/ou fosfatase alcalina sugerem a presença de um cálculo no ducto colédoco (coledocolitíase) (1).


Sintomas

Os sintomas da colelitíase são geralmente decorrentes da inflamação ou obstrução do ducto cístico ou do ducto colédoco (1).

  • Cólica Biliar: É o sintoma mais específico e característico, manifestando-se como uma dor constante e duradoura (1). A obstrução do ducto cístico ou do colédoco por um cálculo causa elevação da pressão intraluminal e distensão visceral, que não é aliviada por contrações biliares repetitivas (1).
    • Em casos típicos, a dor visceral é uma sensação contínua de plenitude ou dor intensa localizada no epigástrio ou quadrante superior direito (QSD) do abdome, frequentemente irradiando para a área interescapular, escápula direita ou ombro (1).
    • A cólica biliar tem um início súbito e pode persistir com alta intensidade por 30 minutos, podendo estender-se por até 5 horas (1). Geralmente, é acompanhada de náuseas e vômitos (1).
    • Pode ser desencadeada pela ingestão de refeições gordurosas, uma refeição farta após um jejum prolongado, ou mesmo após uma refeição normal. A cólica é frequentemente noturna, iniciando algumas horas após o paciente se deitar (1).
    • É crucial salientar que, apesar do nome, a dor da cólica biliar é constante, e não intermitente como o termo “cólica” poderia sugerir (1).
    • Quando a duração da cólica excede 5 horas, deve-se suspeitar de colecistite aguda (1).
  • Sinais de Complicação: Febre ou calafrios acompanhados de dor biliar geralmente indicam uma complicação, como colecistite, pancreatite ou colangite (1).

Prognóstico

A maioria dos pacientes com cálculos biliares assintomáticos (60-80%) não desenvolve sintomas por até 25 anos (1). A incidência de complicações é baixa, cerca de 0,1-0,3% (1). Pacientes que permanecem assintomáticos por 15 anos raramente desenvolverão sintomas em períodos adicionais de acompanhamento, e a maioria dos que desenvolvem complicações já apresentou sintomas de alerta prévios (1). O risco cumulativo de morte por doença calculosa biliar em uma conduta expectante é pequeno, o que justifica que a colecistectomia profilática não se justifica na maioria dos casos (1). Pacientes jovens com cálculos biliares são mais propensos a desenvolver sintomas no momento do diagnóstico inicial em comparação com aqueles com mais de 60 anos (1).


Tratamento

Tratamento Cirúrgico

A decisão de realizar uma colecistectomia em pacientes com cálculos biliares deve ser baseada em três fatores principais (1):

  1. Existência de sintomas: A frequência ou intensidade dos sintomas deve ser suficiente para interferir na rotina diária do paciente.
  2. História de complicação prévia: Ocorrência de colecistite aguda, pancreatite, fístula biliar ou outras complicações relacionadas à doença calculosa biliar.
  3. Presença de condição subjacente: Condições que predisponham o paciente a um maior risco de complicações devido aos cálculos (ex: vesícula biliar calcificada).

Pacientes com cálculos muito volumosos (> 3 cm de diâmetro) e aqueles com anomalias congênitas da vesícula biliar também podem ser considerados para cirurgia profilática (1).

A colecistectomia laparoscópica é a abordagem de acesso mínimo preferencial para a remoção da vesícula biliar e seus cálculos (1). Suas vantagens incluem menor tempo de internação, incapacitação mínima e custo reduzido, tornando-se o procedimento de escolha para a maioria dos pacientes (1). Este procedimento tornou-se o padrão de referência para o tratamento de colelitíase sintomática (1).

Estudos sobre a colecistectomia laparoscópica indicam (1):

  • Complicações ocorrem em aproximadamente 4% dos casos.
  • A conversão para laparotomia (cirurgia aberta) é necessária em 5% dos pacientes.
  • A taxa de mortalidade é acentuadamente baixa (< 0,1%).
  • O índice de lesão nos ductos biliares é pequeno (0,2-0,6%).

Tratamento Clínico

O tratamento clínico para colelitíase é limitado a pacientes com cálculos radiotransparentes com diâmetro inferior a 5 mm (1). A dose de ácido ursodesoxicólico (AUDC) recomendada é de 10-15 mg/kg/dia (1). É importante salientar que cálculos com mais de 10 mm de diâmetro raramente se dissolvem (1). Os cálculos pigmentares não respondem ao tratamento com AUDC (1). Pacientes com doença induzida por cálculos biliares de colesterol que apresentem episódios recorrentes de coledocolitíase após a colecistectomia devem realizar tratamento prolongado com AUDC (1).


Fisiopatologia

Os cálculos biliares são formados devido à composição anormal da bile (1). Existem dois tipos principais de cálculos (1):

  1. Cálculos de Colesterol: Representam cerca de 90% de todos os cálculos (1). São compostos por mais de 50% de monofosfato de colesterol, acrescidos de uma mistura de sais de cálcio, pigmentos biliares, proteínas e ácidos graxos (1).
  2. Cálculos Pigmentares: Constituídos principalmente de bilirrubinato de cálcio, contendo menos de 20% de colesterol (1). Classificam-se em tipos “pretos” e “marrons”, sendo os últimos geralmente formados em decorrência de infecções biliares crônicas (1).

Cálculos de Colesterol e Lama Biliar

O colesterol é praticamente insolúvel em água e depende de sua dispersão aquosa dentro de micelas ou vesículas, que requerem a presença de outros lipídios para solubilizá-lo (1). O colesterol e os fosfolipídios são secretados na bile como vesículas unilamelares de bicamada, que são posteriormente transformadas em micelas mistas (formadas por ácidos biliares, fosfolipídios e colesterol) pela ação dos ácidos biliares (1).

Quando há um excesso de colesterol em relação aos fosfolipídios e ácidos biliares, ocorre a persistência de vesículas instáveis ricas em colesterol. Essas vesículas se agregam em grandes vesículas multilamelares, a partir das quais ocorre a precipitação dos cristais de colesterol (1).

Diversos mecanismos contribuem para a formação de bile litogênica (formadora de cálculos). O mais importante é a secreção biliar aumentada de colesterol (1). Essa secreção aumentada pode estar associada a:

  • Obesidade
  • Síndrome metabólica
  • Dietas com alto teor calórico e ricas em colesterol
  • Uso de fármacos (ex: clofibrato)

Pode ser resultado do aumento da atividade da HMG-CoA redutase, a enzima limitante da síntese hepática de colesterol, e da captação hepática aumentada de colesterol do sangue (1). Em pacientes com cálculos biliares, o colesterol da dieta aumenta a secreção biliar de colesterol, o que não ocorre em pacientes sem cálculos (1).

Além dos fatores ambientais, os fatores genéticos também desempenham um papel relevante na doença calculosa biliar (1). A prevalência de cálculos biliares é maior entre parentes de primeiro grau de indivíduos afetados (1). Em alguns pacientes, a transformação hepática prejudicada do colesterol em ácidos biliares também pode ocorrer, resultando em um aumento da relação colesterol litogênico/ácidos biliares (1).

O excesso de colesterol biliar em relação aos ácidos biliares e fosfolipídios é principalmente devido à hipersecreção de colesterol, embora a hipossecreção de ácidos biliares ou fosfolipídios também possa contribuir (1). Outro distúrbio metabólico dos ácidos biliares que colabora para a supersaturação da bile com colesterol é a transformação acelerada do ácido cólico em ácido desoxicólico, com substituição do pool de ácido cólico por um pool ampliado de ácido desoxicólico. Isso pode ser resultado da desidroxilação ampliada do ácido cólico e da maior absorção do ácido desoxicólico recém-formado, onde a secreção aumentada de desoxicólico está associada à hipersecreção de colesterol na bile (1).

Embora a supersaturação da bile com colesterol seja um pré-requisito essencial, geralmente, é insuficiente para causar a precipitação in vivo (1). A maioria dos indivíduos com bile supersaturada não desenvolve cálculos porque o tempo necessário para que os cristais de colesterol nucleiem e cresçam é maior do que o período em que a bile permanece na vesícula biliar (1).

Um mecanismo crucial é a nucleação dos cristais de monoidrato de colesterol, que é muito acelerada na bile litogênica humana. A nucleação acelerada pode ser causada por excesso de fatores pró-nucleação (mucina e certas glicoproteínas não mucínicas, principalmente imunoglobulinas) ou por deficiência de fatores antinucleação (apolipoproteínas AI e AII, e outras glicoproteínas) (1). Partículas pigmentares também podem ser fatores importantes de nucleação (1).

Um terceiro mecanismo importante na formação dos cálculos biliares de colesterol é a hipomotilidade da vesícula biliar (1). Quando a vesícula esvazia completamente a bile supersaturada ou com cristais, os cálculos não se desenvolvem (1). No entanto, um elevado percentual de pacientes com cálculos biliares apresenta anormalidades no esvaziamento da vesícula. Exames ultrassonográficos mostram que pacientes com cálculos biliares apresentam um volume vesical aumentado em jejum e após uma refeição-teste (volume residual), e que o esvaziamento percentual após a estimulação da vesícula é menor (1).

A incidência de cálculos biliares aumenta em condições associadas ao esvaziamento infrequente ou reduzido da vesícula biliar (incluindo jejum prolongado, nutrição parenteral e gestação) e em usuários de fármacos inibidores da motilidade biliar (1).

A lama biliar é um material mucoso espesso que, ao exame microscópico, revela cristais líquidos de lecitina-colesterol, cristais de monoidrato de colesterol, bilirrubinato de cálcio e géis de mucina (1). A lama biliar forma uma camada semelhante a um crescente na porção mais baixa da vesícula biliar e é reconhecida por ecos característicos na ultrassonografia (1). Sua presença sugere duas anormalidades:

  1. Distúrbio do equilíbrio normal entre a secreção de mucina pela vesícula e sua eliminação (1).
  2. Nucleação dos solutos biliares (1).

Vários estudos demonstraram que a lama biliar pode ser uma forma precursora da doença calculosa (1). A lama biliar pode se formar em condições que causam hipomotilidade da vesícula biliar, incluindo intervenções cirúrgicas, queimaduras, nutrição parenteral total, gravidez e uso de anticoncepcionais orais, todas associadas à formação de cálculos biliares. A presença de lama biliar indica a supersaturação da bile com colesterol ou bilirrubinato de cálcio (1).

Outras duas condições associadas à formação de cálculos de colesterol ou lama biliar são a gravidez e a redução rápida de peso através de dietas de baixíssimo teor calórico (1). Durante a gestação, duas alterações fundamentais contribuem para o estado colelitogênico:

  1. Aumento acentuado da saturação de colesterol da bile durante o terceiro trimestre (1).
  2. Contração lenta da vesícula em resposta a uma refeição padronizada, resultando em menor esvaziamento da vesícula (1).

Estudos confirmaram que essas alterações são relacionadas à gestação em si e que há uma rápida reversão do quadro após o parto (1). Embora comum na gestação, a lama biliar é geralmente assintomática e regride espontaneamente após o parto (1). Em relação a dietas restritas em calorias, cerca de 10-20% das pessoas que perdem peso rapidamente desenvolvem cálculos biliares (1).

Em resumo, a doença causada por cálculos de colesterol resulta de várias alterações, incluindo (1):

  • Supersaturação da bile com colesterol.
  • Nucleação do monoidrato de colesterol com subsequente retenção de cristais e crescimento do cálculo.
  • Função motora anormal da vesícula biliar com esvaziamento retardado e estase.

Cálculos Pigmentares

Os cálculos pigmentares pretos são compostos por bilirrubinato de cálcio puro ou por complexos poliméricos com cálcio e glicoproteínas mucínicas (1). São mais comuns em pacientes com estados hemolíticos crônicos (com aumento da bilirrubina não conjugada na bile), cirrose hepática, síndrome de Gilbert ou fibrose cística (1). A reciclagem êntero-hepática da bilirrubina em doenças ileais também contribui para sua patogênese (1).

Os cálculos pigmentares marrons são compostos por sais de cálcio de bilirrubina não conjugada com quantidades variáveis de colesterol e proteínas (1). Esses cálculos são causados pelo aumento das quantidades de bilirrubina não conjugada insolúvel na bile, que precipita e forma cálculos (1).


Referências Bibliográficas

  1. JAMESON, J. L. et al. Medicina Interna de Harrison. 20. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2021. 3522 p.