Critérios de Normalidade em Psicopatologia e o Fenômeno da Medicalização
Introdução
A delimitação entre o que é “normal” e “patológico” em psicopatologia é uma questão complexa, permeada por diversas abordagens e critérios. A compreensão dessas perspectivas é fundamental para a prática clínica, especialmente diante do crescente fenômeno da medicalização, que redefine experiências humanas como condições de saúde.
Critérios de Normalidade
Os critérios de normalidade empregados em psicopatologia são multifacetados, cada um com suas próprias fundamentações e limitações:
- Normalidade como Ausência de Doença: Define a normalidade pela inexistência de uma condição patológica identificável. Segundo esta perspectiva, exemplificada pela concepção de Rene Leriche, a saúde seria caracterizada pela ausência de sintomas ou desconfortos orgânicos percebidos. Tal critério é considerado falho e precário, primariamente por sua natureza tautológica e por se basear em uma “definição negativa”, ou seja, a normalidade é definida pela carência de doença (1).
- Normalidade Ideal: Neste enfoque, a normalidade é concebida como um padrão utópico ou idealizado. Estabelece-se, de forma arbitrária, uma norma que representaria o estado “sadio” ou “mais evoluído” teoricamente alcançável (1).
- Normalidade Estatística: Este critério equipara a norma à frequência com que um fenômeno é observado. É particularmente aplicável a características quantitativas, onde o “normal” corresponde ao que se manifesta com maior incidência na população geral. Indivíduos cujas características se situam estatisticamente nos extremos de uma curva de distribuição normal podem ser considerados, sob esta ótica, como anormais ou portadores de uma condição patológica (1).
- Normalidade como Bem-Estar: Conceitua a normalidade como a presença de bem-estar. Este critério é passível de crítica devido à sua amplitude e imprecisão, uma vez que o bem-estar é um construto de difícil definição objetiva. Adicionalmente, a concepção de um completo bem-estar físico, mental e social é de tal forma idealizada que poucos indivíduos se enquadrariam na categoria de “saudáveis” (1).
- Normalidade Funcional: Baseia-se na avaliação de aspectos funcionais, não necessariamente quantitativos. Um fenômeno é considerado patológico a partir do momento em que se revela disfuncional, ocasionando sofrimento para o próprio indivíduo ou para o seu contexto social (1).
- Normalidade como Processo: Em detrimento de uma visão estática, este critério valoriza os aspectos dinâmicos do desenvolvimento psicossocial. Consideram-se as desestruturações e reestruturações ao longo do tempo, as crises e as transformações características de determinadas fases etárias. Este conceito possui especial relevância na psicopatologia do desenvolvimento, aplicável à psiquiatria e à psicologia clínica de crianças, adolescentes e idosos (1).
- Normalidade Subjetiva: Confere maior ênfase à percepção do próprio indivíduo acerca de seu estado de saúde e de suas vivências internas. A principal limitação deste critério reside no fato de que muitos indivíduos que se percebem bem – como, por exemplo, sujeitos em fase maníaca no transtorno bipolar – podem, na realidade, apresentar um transtorno mental grave (1).
Conclui-se, de modo geral, que a delimitação de normalidade e doença em psicopatologia é influenciada pelos fenômenos específicos em estudo e pelas premissas filosóficas adotadas pelo profissional ou instituição. Ademais, em certos casos, pode-se recorrer à combinação de múltiplos critérios para se atingir o objetivo diagnóstico ou de avaliação pretendido (1).
Medicalização
A medicalização designa o processo pelo qual fenômenos alheios à esfera médica passam a ser definidos e tratados como problemas de saúde, frequentemente categorizados como doenças ou transtornos (1).
No contexto da psicopatologia, a medicalização refere-se mais especificamente à transformação de comportamentos interpretados como desviantes em diagnósticos de transtornos mentais. Este processo frequentemente implica a aplicação do controle e do poder médico sobre as condições assim convertidas em entidades nosológicas (1).
Referência Bibliográfica
- Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed; 2019.