Doença Renal Crônica (DRC): Abordagem Clínica e Nutricional Abrangente
Introdução
A Doença Renal Crônica (DRC) é uma síndrome clínica caracterizada pela perda progressiva e irreversível das funções renais. No entanto, o organismo possui uma reserva de néfrons que permite manter a homeostase mesmo com a perda de até 75% da função renal, resultando em um período assintomático. Os sintomas de uremia, mais evidentes, surgem apenas quando a taxa de filtração glomerular (TFG) diminui para menos de 15% do valor normal, sendo insuficiente para excretar a sobrecarga diária de água e solutos (2).
Diagnóstico e Estadiamento da Doença Renal Crônica
Em 2002, a National Kidney Foundation estabeleceu o diagnóstico da DRC com base em três componentes: anatômico ou estrutural (marcadores de lesão renal); funcional (baseado na taxa de filtração glomerular); e temporal (2). De acordo com essa definição, considera-se portador de DRC qualquer indivíduo que, independentemente da causa, apresente uma TFG < 60 mL/min/1,73 m² ou pelo menos um marcador de dano renal parenquimatoso, caracterizado pela presença de proteinúria por no mínimo 3 meses (1, 2, 3).
Avaliação da Função Renal
A avaliação da função renal deve ser realizada pela estimativa da TFG (2). A creatinina sérica oferece uma estimativa grosseira da filtração glomerular; contudo, seu ritmo de excreção não é constante entre indivíduos nem ao longo do tempo (2). A dosagem isolada da creatinina sérica reflete tardiamente a diminuição da TFG, pois seus níveis só se elevam após uma perda de 50% ou mais da TFG (2).
A TFG pode ser estimada por meio de fórmulas. A taxa de declínio da filtração glomerular é relativamente constante no mesmo paciente, mas varia consideravelmente entre indivíduos, relacionando-se com a doença de base e fatores específicos de cada paciente (2).
A progressão da DRC é caracterizada pela diminuição da TFG estimada (TGFe) em mais de 5 mL/min/1,73 m² em um ano, ou em mais de 10 mL/min/1,73 m² em um período de cinco anos. Adicionalmente, a proteinúria é um preditor da progressão da doença (2).
Estágios da Doença Renal Crônica
Os estágios da DRC são classificados conforme a TFG:
- Estágio 1: TFG – 90-130 mL/min. Nesta fase, já podem estar presentes marcadores como proteinúria, hematúria ou alterações anatômicas.
- Estágio 2: TFG – 60-89 mL/min.
- Estágio 3: TFG – 30-59 mL/min. Considerado um estágio avançado.
- Estágio 4: TFG – 15-29 mL/min. Também um estágio avançado.
- Estágio 5: TFG – <15 mL/min. Este é o estágio terminal, que exige transplante renal ou diálise.
Os quatro primeiros estágios representam a fase pré-dialítica, marcada pela contínua perda da função renal e o consequente desenvolvimento da síndrome urêmica, com progressivas alterações da homeostasia do organismo (3).
Fisiopatologia da Doença Renal Crônica
A DRC é uma síndrome clínica caracterizada pela perda progressiva e irreversível das funções renais (2). Apesar disso, o ser humano é dotado de um número de néfrons superior ao necessário para manter a homeostase. Dessa forma, um indivíduo pode permanecer assintomático mesmo com a perda de até 75% da função renal. Os sintomas mais evidentes de uremia surgem apenas quando a TFG é inferior a 15% do valor normal, tornando-se insuficiente para excretar a sobrecarga diária de água e solutos (2).
Na DRC, uma lesão renal inicial desencadeia um processo de perda progressiva da função renal, durante o qual ocorrem várias adaptações estruturais e funcionais que, em última análise, caracterizam a doença (2).
Inicialmente, em resposta à redução de seu número, os néfrons aumentam de tamanho, um fenômeno denominado hiperplasia renal (2). A partir desse ponto, há um aumento nas taxas de filtração e perfusão do rim. Os glomérulos sofrem adaptações hemodinâmicas que resultam em hipertensão glomerular e, subsequentemente, perda da seletividade, que é a capacidade de restringir a passagem de macromoléculas para a urina (2). O aumento na permeabilidade glomerular às proteínas é uma resposta à redução do número de néfrons, e sua intensidade varia conforme a etiologia da disfunção renal (2).
Os túbulos também sofrem alterações estruturais e funcionais (2). Observa-se um aumento do tamanho do túbulo proximal e de sua capacidade reabsortiva, o que contribui para a preservação do balanço túbulo-glomerular (2). Além disso, há um aumento da reabsorção no ramo ascendente espesso da alça de Henle, diretamente proporcional à TFG. A redução no número de néfrons também é acompanhada de um aumento na secreção de potássio e na reabsorção de sódio no túbulo distal (2).
Todos esses mecanismos adaptativos não são exclusivos da DRC, podendo ser acionados quando o rim normal é submetido a uma sobrecarga, como uma ingestão proteica elevada (2).
Os sintomas que caracterizam a doença renal aparecem quando os limites desse sistema de adaptação são atingidos. Existem, então, três padrões principais de adaptação na progressão da DRC:
- Ausência de regulação ou adaptação: A concentração plasmática do soluto aumenta. É o caso da ureia e da creatinina, cujas taxas de excreção dependem da carga filtrada, e os mecanismos de reabsorção e secreção tubular são insuficientes para impedir o aumento de sua concentração plasmática (2).
- Regulação com limitação: A concentração plasmática normal do soluto é mantida até os estágios mais avançados da doença renal, quando a TFG cai abaixo de um nível crítico, e a excreção não consegue mais contrabalançar a ingestão (2). Solutos como fosfato e urato são submetidos a filtração, reabsorção e/ou secreção tubular.
- Regulação completa: A concentração sérica é mantida normal até os estágios terminais da doença renal (2). Para isso, há um aumento da excreção dos solutos em cada néfron (sódio, potássio, magnésio), resultante de alterações no padrão de transporte tubular.
Adicionalmente aos fatores de risco tradicionais (obesidade, hipertensão, diabetes, dislipidemia, entre outros) e às características da própria doença (hipervolemia, anemia, alterações no metabolismo do cálcio e do fósforo), os pacientes apresentam alta prevalência dos chamados fatores emergentes: hiper-homocisteinemia, concentrações elevadas de lipoproteína (a), estresse oxidativo e inflamação (3).
As principais complicações da DRC incluem: anemia, caquexia, inflamação, estresse oxidativo, aterosclerose, doença mineral óssea, acidose metabólica e redução do apetite (3).
Principais Causas da DRC
O diabetes mellitus e a hipertensão arterial são responsáveis por mais de 50% dos casos de DRC (2).
Doenças Renais Primárias
- Glomerulonefrites crônicas (2)
- Pielonefrite crônica (2)
- Nefrites tubulointersticiais crônicas (relacionadas a drogas) (2)
- Doenças obstrutivas crônicas (2)
Doenças Sistêmicas
- Diabetes Mellitus (2)
- Hipertensão arterial (2)
- Doenças autoimunes (2)
- Gota (2)
- Amiloidose, mieloma múltiplo (2)
Doenças Hereditárias
- Rins policísticos (2)
- Síndrome de Alport (2)
- Cistinose (2)
Malformação Congênita
- Agenesia renal (2)
- Hipoplasia renal bilateral (2)
- Válvula de uretra posterior (2)
Consequências Clínicas da DRC
Expansão do Volume Extracelular
O volume de fluido extracelular permanece próximo do normal até os estágios mais avançados da doença renal. Isso ocorre porque o rim consegue aumentar a fração de excreção de sódio à medida que a doença progride, diferentemente da capacidade de concentrar a urina, que diminui desde o início da disfunção renal (2). Nos estágios finais da DRC, ocorre perda da capacidade de excretar sódio, levando à retenção do íon e de água, com consequente surgimento de edema, hipervolemia e hipertensão arterial (2).
Distúrbios Endócrinos e Metabólicos
Insulina
Pacientes urêmicos apresentam aumento da resistência periférica à insulina e redução da secreção pelas ilhotas pancreáticas (2). Os rins são responsáveis pelo clearance de 25% a 40% da insulina produzida (2). Na DRC, há um aumento significativo da meia-vida da insulina quando a TFG cai abaixo de 20 mL/min (2). A partir desse ponto, pode haver redução da necessidade de administração de insulina exógena, e até mesmo indivíduos não diabéticos podem apresentar episódios de hipoglicemia (2).
Alterações do Metabolismo Lipídico
A alteração quantitativa mais frequente é a hipertrigliceridemia, resultante de uma redução da lipólise de lipoproteínas ricas em triglicerídeos (2). Os níveis de colesterol total geralmente permanecem normais, mas é comum observar redução das lipoproteínas de alta densidade (HDL) e aumento das lipoproteínas de média densidade (IDL) (2).
Hiperparatireoidismo
Grande parte dos pacientes nos estágios finais da DRC desenvolve hiperplasia das paratireoides. Essa hiperplasia leva a um aumento na produção de PTH, que pode atingir até 200 vezes o valor normal, caracterizando o hiperparatireoidismo (2).
Hiperuricemia
O comprometimento renal crônico pode reduzir a excreção de ácido úrico e agravar quadros de hiperuricemia, aumentando o risco para gota (2).
Acidose Metabólica
A acidose metabólica é o distúrbio acidobásico mais comum na doença renal (2, 3). Ela está associada a vários efeitos adversos, como a doença mineral óssea (DMO), catabolismo muscular, hipoalbuminemia e risco aumentado de mortalidade (3). Acredita-se que a acidose surja quando a TGFe reduz para cerca de 30 mL/min (3).
Inicialmente, o equilíbrio acidobásico é mantido pelo aumento da excreção de amônia pelos néfrons funcionantes. Posteriormente, essa adaptação torna-se insuficiente devido à redução na capacidade de síntese de amônia (2). Além disso, nos estágios finais da DRC, observa-se uma redução na reabsorção de bicarbonato, como consequência da hipercalemia, hiperparatireoidismo e expansão do volume extracelular (2).
A gravidade da acidose pode variar entre pacientes urêmicos com o mesmo grau de disfunção renal, refletindo diferentes respostas e a variabilidade da carga ácida gerada pela dieta (3). No entanto, diversos estudos mostram que o estado acidobásico desses pacientes é determinado principalmente pelo grau de insuficiência renal e não pela dieta (3).
Anemia
A anemia é uma das complicações mais comuns da DRC, caracterizando-se por ser normocrômica e normocítica, ou seja, com quantidades normais de hemoglobina e tamanho normal das células vermelhas (2, 3).
Dentre as principais causas da anemia em pacientes renais, destacam-se:
- Produção diminuída de eritropoietina (EPO): O rim é um órgão endócrino responsável por 90% da produção de eritropoietina. A EPO age na medula óssea, regulando o número de precursores eritroides e promovendo sua maturação em eritrócitos (2, 3). Esse controle é realizado a partir da redução na tensão de oxigênio no tecido renal, que estimula a produção de eritropoietina (2).
- Hemólise: Em pacientes com DRC, os eritrócitos podem sofrer uma redução de 25-50% devido à presença de toxinas urêmicas (3).
- Deficiência de ferro: Deve ser sempre avaliada em pacientes nos estágios 3 e 4, sendo diagnosticada quando os níveis de ferritina sérica são < 100 mcg/L (3).
- Deficiência de B12 e folato: Vitaminas essenciais na produção e manutenção das células vermelhas (3).
- Outras causas: Perda sanguínea, hipotireoidismo, infecção ou inflamação crônica, hiperparatireoidismo, infiltração da medula óssea (mieloma) e aplasia das células vermelhas (3).
Após nefrectomia bilateral, a produção de eritropoietina é praticamente extinta em humanos. Além disso, rins doentes são incapazes de aumentar cronicamente a produção desse hormônio em resposta a um estímulo anêmico-hipóxico apropriado (2). Em decorrência da uremia, também ocorre uma redução da vida média das hemácias.
Atualmente, o uso sistemático da eritropoietina recombinante humana, associado à reposição de ferro em pacientes com DRC, é responsável por uma importante redução na morbidade relacionada à uremia (2).
Estudos com pacientes nos estágios 3-5 da DRC indicam um aumento na prevalência da anemia a partir do estágio 3b (TGFe ≤ 45 mL/min/1,73 m²) (3). A anemia também é comum em pacientes renais diabéticos (3).
A National Kidney Foundation Kidney Dialysis Outcome Quality Initiative (NFK-K/DOQI) considera como adequada uma variação nos níveis de hemoglobina entre 11-12 g/dL (3). No entanto, outras entidades sustentam valores que variam entre 10,5-12 g/dL em adultos (3). É importante observar que concentrações de hemoglobina não devem ser maiores que 13 g/dL em pacientes com DRC (em diálise ou não) quando há administração de agentes estimulantes de eritropoiese (ESA). Além disso, a terapia para atingir concentrações de hemoglobina acima de 10-12 g/dL aumenta os riscos de infarto, hipertensão e trombose (3).
Complicações Cardiovasculares
Cerca de metade dos óbitos em pacientes com DRC pode ser atribuída a causas cardiovasculares (2). Nota-se que nessa população, a incidência de fatores de risco tradicionalmente associados a doenças cardiovasculares (DCV), como diabetes, hipertensão, dislipidemia, hiper-homocisteinemia e sedentarismo, é elevada, mesmo antes do início da terapia de reposição renal (2).
Alguns fatores especificamente associados à uremia e à terapia dialítica são implicados na progressão da DCV nessa população, incluindo inflamação crônica, alterações no metabolismo mineral (principalmente hiperfosfatemia) e aumento do estresse oxidativo (2).
No decurso da DRC, a DCV pode se manifestar de diferentes formas:
- Doença cardíaca isquêmica: Geralmente secundária à doença coronariana aterosclerótica. Mesmo sem lesão crítica, os pacientes podem apresentar sintomas isquêmicos, resultantes de uma redução da reserva vasodilatadora e/ou da dificuldade de transporte e utilização do oxigênio pelo miocárdio (2). A anemia e a hipertrofia de ventrículo esquerdo são fatores predisponentes (2).
- Hipertrofia Ventricular Esquerda (HVE): Várias causas estão associadas à gênese da HVE na DRC, tais como hipertensão arterial, anemia, fístula arteriovenosa (FAV), hipovolemia, hiperparatireoidismo, entre outras (2). A HVE está associada ao desenvolvimento de arritmias, insuficiência cardíaca (IC) sistólica e diastólica, e isquemia miocárdica, além de constituir, por si só, um fator de risco independente para mortalidade nessa população (2).
- Insuficiência Cardíaca (IC): Manifesta-se essencialmente como dispneia decorrente de edema pulmonar ou aumento da pressão capilar pulmonar (2). Os fatores associados ao desenvolvimento de IC são aqueles relacionados à sobrecarga volêmica, anemia, hipertensão e morte celular (2).
Efeitos Ósseos na DRC
O metabolismo mineral ósseo sofre alterações significativas na DRC. Com a diminuição da função renal, ocorre uma redução na produção de vitamina D ativa, o que leva à diminuição da reabsorção intestinal de cálcio e da excreção renal de cálcio (2).
A queda nos níveis de cálcio estimula a síntese e secreção do hormônio PTH, que, por sua vez, provoca uma redução na reabsorção de fosfato pelo néfron distal. Dessa forma, o balanço de fosfato é mantido adequado no início da doença renal. No entanto, com a progressão da DRC, todas essas adaptações tornam-se insuficientes, e a hiperfosfatemia, hipocalcemia e a elevação dos níveis de PTH, causadas pela carência de 1,25-vitamina D, são achados frequentes nos estágios finais da DRC (2).
A osteodistrofia renal engloba as alterações ósseas específicas associadas à uremia, e é classificada em doenças de alta remodelação (hiperparatireoidismo/osteíte fibrosa) e baixa remodelação óssea (doença óssea adinâmica e osteomalacia) (2).
- Osteíte fibrosa: É uma lesão mediada pelo aumento prolongado do PTH sérico (2).
- Doença óssea de baixa remodelação: Caracteriza-se por pouca formação óssea. As possíveis causas incluem sobrecarga de alumínio, ferro, cálcio e vitamina D (2).
Pacientes em estágio terminal da doença renal frequentemente apresentam uma doença óssea complexa, que é uma combinação variável de osteoesclerose, osteomalacia e disfunções paratireoidianas (1). A expressão dessas anormalidades depende do regime médico ao qual o paciente é submetido, especificamente o manejo do metabolismo do cálcio, do fósforo e da vitamina D (1).
Em pacientes com função renal comprometida, especialmente aqueles tratados com grandes doses de antiácidos contendo alumínio para bloquear a absorção de fósforo, o alumínio se acumula nos locais de mineralização do processo de remodelação óssea (1). Embora se pensasse anteriormente que o alumínio era o principal responsável pelas características patológicas, hoje ele é considerado um fator contribuinte de menor escala na osteopatia renal (1).
Estratégias modernas para prevenir o hiperparatireoidismo secundário em pacientes com DRC dão grande importância à terapia de reposição de vitamina D. Contudo, fatores como o estágio da doença, a causa da doença renal, a concentração de hormônios da paratireoide, o estado ósseo, o depósito de vitamina D e as concentrações séricas de cálcio e fosfato devem ser ponderados (3). A razão para a reposição de vitamina D é a prevenção do hiperparatireoidismo secundário nos estágios iniciais da DRC, pois, uma vez constatado o desenvolvimento de hiperplasia da paratireoide e a osteodistrofia, essas condições não podem ser completamente revertidas (3).
Manifestações Neurológicas
Indivíduos portadores de DRC podem desenvolver uma série de sintomas manifestados como disfunções cognitivas, somatossensoriais, neuromusculares e autonômicas. A gravidade e progressão dessas manifestações variam conforme o grau de progressão da doença renal. Esse conjunto de alterações é denominado encefalopatia urêmica (2).
As causas da encefalopatia urêmica são complexas e ainda não totalmente estabelecidas. Alguns estudos demonstraram redução da utilização de oxigênio pelo cérebro de pacientes com DRC, e outros sugeriram uma possível relação entre encefalopatia e PTH (2). Geralmente, os sintomas neurológicos são aliviados pela instituição de terapia de substituição renal (TSR) e cessam após o restabelecimento da função renal normal, como ocorre após um transplante renal bem-sucedido (2).
Caquexia – “Wasting”
É importante ressaltar que a caquexia difere da desnutrição. Na desnutrição, o gasto energético encontra-se diminuído, enquanto em pacientes com caquexia, ele permanece alto e associado à perda muscular e relativa subutilização de gordura corporal, ao contrário do que acontece na desnutrição (3). A caquexia foi definida como uma “síndrome metabólica complexa associada à doença de base e caracterizada pela perda muscular, com ou sem perda de gordura” (3).
Embora a ingestão inadequada possa contribuir para a caquexia, evidências indicam que outros fatores são importantes na sua patogênese, como: desequilíbrio dos hormônios do apetite devido ao clearance renal reduzido, irregularidades de sinalização dos neuropeptídeos, resistência à insulina e a fatores de crescimento semelhantes à insulina, e acidose metabólica (3). Além disso, há evidências de que a inflamação é uma importante causa da perda muscular nesses pacientes (3).
A uremia leva à diminuição da síntese proteica, a um metabolismo energético anormal e à acidose, que, associados, provocam a perda de massa corporal e a maior necessidade de aminoácidos essenciais e nitrogênio (2). Adicionalmente, é comum uma diminuição espontânea no consumo proteico, aumentando o risco para o desenvolvimento da desnutrição e da hipoalbuminemia (2).
Inflamação
Pacientes com DRC, mesmo em tratamento conservador, já apresentam concentrações elevadas de marcadores pró-inflamatórios, como IL-6, TNF-α e PCR, que se agravam após o início do tratamento dialítico (3). Nessas populações, a inflamação está diretamente relacionada à caquexia, à perda de apetite e ao risco aumentado para aterosclerose (3). Nesse contexto, pesquisadores associam a síndrome “MIA”, que representa a relação entre má nutrição, inflamação e aterosclerose, como uma das principais causas de mortalidade em pacientes renais crônicos (3).
Estresse Oxidativo
Pacientes com DRC apresentam níveis elevados de estresse oxidativo, tanto decorrente da uremia quanto da suplementação de ferro intravenoso e de fatores relacionados à diálise (3). Além disso, esses pacientes tendem a apresentar baixas concentrações sanguíneas de agentes antioxidantes, como zinco, selênio, vitaminas e outros compostos (3).
O aumento do estresse oxidativo resulta em um maior grau de oxidação das partículas de LDL, com consequente formação de LDL oxidada, considerada um fator importante na iniciação e propagação da placa aterosclerótica, em processos inflamatórios e no acúmulo de lipídios na parede arterial (3).
Aterosclerose
As doenças cardiovasculares representam a principal causa de morte em indivíduos com DRC, especialmente naqueles no estágio 5 da doença (3). Alguns estudos demonstraram que esses pacientes geralmente apresentam concentrações sanguíneas elevadas de LDL-oxidado e LDL-eletronegativa, ambas importantes no desenvolvimento da aterosclerose (3).
Dito isso, a hipertensão deve ser tratada com inibidores do sistema renina-angiotensina, somado ao tratamento das dislipidemias com estatinas (3). É importante considerar também a calcificação vascular, que é um importante fator de risco e pode ser tratada com vitamina D e quelantes de fósforo (3).
Diminuição do Apetite
É comum que pacientes com DRC apresentem anorexia (perda de apetite), sendo esta um importante fator da caquexia, diretamente relacionada ao número de hospitalizações e à baixa qualidade de vida (3). Tradicionalmente, a anorexia é considerada um sinal de intoxicação urêmica. Como os sintomas da anorexia são temporária e parcialmente reduzidos após o início da hemodiálise, sugere-se que o controle das toxinas urêmicas pode contribuir para a redução do quadro (3). Contudo, a anorexia não deve ser associada apenas aos efeitos das toxinas urêmicas, pois pode estar relacionada também a outras complicações importantes da DRC (3).
As diversas manifestações urêmicas contribuem para a perda da vontade de ingerir alimentos, incluindo sabor metálico na boca, diminuição da palatabilidade, boca seca, inflamação da mucosa e ulceração oral, e fatores que podem dificultar a deglutição e causar inapetência (3). A depressão e a ansiedade também exercem forte influência no apetite (3).
Alterações nos hormônios do apetite têm sido estudadas, em especial o aumento de hormônios como a desacil-grelina, a obestatina e a leptina, bem como a redução das concentrações de acil-grelina (3).
Microbiota Intestinal
Pacientes com DRC estão constantemente expostos a diversos fatores, como desnutrição, edemas, estresse emocional, patológico, psicológico ou farmacológico, constipação intestinal e azotemia (3). Todos esses fatores alteram a barreira intestinal, tornando-a mais permeável (3). Associado ao aumento da permeabilidade, há um desequilíbrio da microbiota intestinal, com consequente maior absorção de substâncias como lipopolissacarídeos e toxinas urêmicas, contribuindo para o aumento do estresse oxidativo e da inflamação sistêmica (3).
No entanto, o uso de probióticos deve ser recomendado com cautela na DRC, pois alguns estudos mostram um aumento de ureia, potássio e da toxina indoxil sulfato (3). Como as toxinas urêmicas são provenientes da fermentação de alguns aminoácidos pela microbiota intestinal, a dieta hipoproteica prescrita durante a fase pré-dialítica tem função benéfica adicional ao uso de probióticos e simbióticos (3).
Conduta Clínica e Terapêutica
O tratamento da DRC abrange duas fases distintas:
- Tratamento conservador: Direcionado a pacientes nos estágios 1-4, com medidas para retardar a progressão da doença (2).
- Terapia de substituição renal: Inclui tratamento dialítico ou transplante renal para pacientes no estágio 5 da DRC (2).
Terapia Farmacológica
Diuréticos
Os diuréticos tiazídicos não provocam natriurese efetiva em pacientes com elevação da creatinina sérica acima de 2 mg/dL ou redução do clearance de creatinina abaixo de 30 mL/min, provavelmente devido à redução da oferta de sódio ao néfron distal (2). Nesses pacientes, os diuréticos de alça são os agentes de escolha para redução do sódio e do volume extracelular (2).
Inibidores da Enzima Conversora de Angiotensina (IECA) e Antagonistas de Receptores da Angiotensina 1 (AT1)
Os IECA e antagonistas de receptores de angiotensina 1 (AT1) reduzem a pressão intraglomerular e a proteinúria (2). Existe um vasto corpo de evidências demonstrando que esses agentes são mais efetivos do que outros anti-hipertensivos na prevenção da progressão da DRC (2).
Terapia Nutricional
A conduta nutricional na DRC é crucial para o manejo da doença e a prevenção de complicações. As recomendações gerais incluem:
- Restrição proteica:
- Pacientes pré-diálise: 0,6-0,8 g/kg de peso ideal/dia (3).
- Pacientes em hemodiálise: 1,1 g/kg de peso ideal/dia (3).
- Pacientes em diálise peritoneal: 1,2-1,3 g/kg de peso ideal/dia (3).
- A National Kidney Foundation sugere uma ingestão proteica de 0,8-1,0 g/kg (2).
- Dietas hipoproteicas reduzem a geração de escórias nitrogenadas e íons inorgânicos, que causam muitos dos distúrbios clínicos e metabólicos característicos da uremia (2). Meta-análises indicam que essas dietas estão associadas ao retardo na progressão da DRC ou no início da TSR (2, 3).
- Ingestão Calórica: Recomenda-se cerca de 30-40 kcal/kg de peso ideal/dia para pacientes em hemodiálise, considerando o gasto energético da atividade física (3).
- Restrição de sódio: Pacientes com DRC devem reduzir a ingestão de sódio, sendo que para aqueles em tratamento hemodialítico, a restrição hídrica também é indicada (3). A restrição dietética de sódio é um componente fundamental da terapêutica, já que esses pacientes apresentam aumento do sódio corporal total e expansão do volume extracelular (2). A restrição recomendada é de 2-4 g de sódio/dia (2). Para controle do edema, recomenda-se 2-3 g de sal/dia (1000-2000 mg/dia).
- Restrição de fósforo: Pacientes com DRC que apresentam concentração plasmática de PTH > 70 pg/mL (estágio 3) ou > 110 pg/mL (estágio 4), em mais de duas análises bioquímicas consecutivas, devem restringir a ingestão de fosfato (3). O nível elevado de fósforo sérico é altamente preditivo de mortalidade, possivelmente devido à calcificação vascular aumentada (2). Os níveis devem ser mantidos entre 2,7-4,6 mg/dL nos estágios 3 e 4, e entre 3,5-5,5 mg/dL no estágio 5 (2). A ingestão de fosfato pela alimentação deve ser entre 800 a 1000 mg/dia (ajustada às necessidades proteicas) (2, 3). O controle da ingestão de fosfato raramente exclui a necessidade do uso de quelantes, que devem ser ingeridos com alimentos ricos em fósforo para prevenir sua absorção intestinal (3).
- Controle Glicêmico: A hiperglicemia é um fator de risco independente para nefropatia (2). Estudos mostram que os níveis de hemoglobina glicada se correlacionam com a perda da função renal e que o controle glicêmico reduz a progressão da DRC (2). A ADA recomenda manter os níveis da hemoglobina glicada abaixo de 7% (2).
- Suplementação de vitaminas e minerais: Aparentemente, com exceção do ferro, não há necessidade de suplementar rotineiramente vitaminas e minerais; no entanto, é importante avaliar baixas concentrações de algumas vitaminas e minerais na alimentação desses pacientes (3).
Suplementação Específica
- Ferro (se necessário): A deficiência de ferro é comum, especialmente em hemodiálise (3). A correção da anemia pode limitar a progressão da DRC e diminuir a mortalidade (2). A ferritina plasmática deve ser mantida acima de 100 ng/dL com suplementação de ferro (2). Suplementos orais devem ser ingeridos entre as refeições e não concomitantemente com quelantes de fósforo (3).
- Cálcio (se necessário): Pacientes com TFG abaixo de 60 mL/min/1,73 m² frequentemente apresentam hipocalcemia (2). A suplementação de cálcio (carbonato de cálcio) e/ou vitamina D é indicada se houver sintomas de hipocalcemia ou níveis de PTHi acima do recomendado (2). A dose total de cálcio elementar pelo quelante não deve ultrapassar 1500 mg/dia ou 2000 mg incluindo o cálcio da dieta (2).
- Vitamina D (se necessário): Pacientes com TGFe abaixo de 60 mL/min/1,73 m² frequentemente apresentam hiperparatireoidismo secundário com altas concentrações de PTH (3). A administração de pequenas doses de vitamina D é interessante para reduzir as concentrações de PTH, melhorar a histologia óssea e aumentar a densidade mineral óssea (3).
- Bicarbonato de sódio (se necessário): Recomendada para pacientes com acidemia metabólica visando preservar a massa muscular e prevenir doenças ósseas (2).
- Potássio (se necessário): A hipercalemia é uma causa potencial de morte súbita em pacientes com DRC em hemodiálise (3). Se as concentrações de potássio sérico pré-diálise passarem de 5,0 mmol/L, deve-se realizar a restrição de potássio na dieta e reavaliar medicamentos que contribuam para a hipercalemia (3).
- Selênio (se necessário): Pacientes renais frequentemente têm concentrações reduzidas de selênio e atividade da glutationa peroxidase, o que tem sido relacionado ao aumento do risco de doenças cardiovasculares (3). A suplementação de selênio pode melhorar a atividade da glutationa peroxidase, contribuindo para a redução de EROs, cardioproteção e melhora do sistema imune (3). O consumo de 1 unidade de castanha-do-brasil por dia durante três meses foi eficaz em aumentar as concentrações plasmáticas e eritrocitárias de selênio, bem como a atividade da glutationa peroxidase em pacientes em hemodiálise (3).
Outros Tratamentos
- Fim do tabagismo: O tabagismo está associado à proteinúria mais grave na DRC (2).
- Controle da pressão arterial: O controle rigoroso da pressão arterial retarda a progressão da DRC. A recomendação é manter a pressão arterial abaixo de 140/90 mmHg em pacientes com hipertensão e diabetes ou DRC (2).
Referências Bibliográficas
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