Avaliação e Manejo de Doenças Gastrointestinais: Um Guia Clínico Abrangente
Introdução
O trato gastrointestinal (TGI) desempenha funções vitais na assimilação de nutrientes e eliminação de detritos metabólicos. A complexidade de suas funções o torna suscetível a uma vasta gama de distúrbios, que podem se manifestar de diversas formas. Este guia aborda a anamnese, o exame físico, exames laboratoriais, e a fisiopatologia das principais condições gastrointestinais.
Fisiologia do Trato Gastrointestinal
O TGI é responsável por duas funções primárias: a assimilação de nutrientes para o corpo e a eliminação de detritos metabólicos (1).
No estômago, o ácido gástrico promove a esterilização do intestino proximal (1). O estômago proximal é encarregado da função de armazenamento do bolo alimentar (1). A maior parte da absorção de nutrientes ocorre no intestino delgado (1). No duodeno, o alimento triturado se mistura com o suco pancreático e a bile, sendo a bile secretada pelo fígado e armazenada na vesícula biliar (1). O intestino proximal oferece as condições ideais para uma rápida absorção da maioria dos nutrientes e sais minerais, enquanto o íleo é mais adequado para a absorção de vitamina B12 e sais biliares (1).
O cólon prepara o bolo fecal para a eliminação (1). Sua mucosa desidrata as fezes, reduzindo o volume diário de 1000-1500 mL para 100-200 mL, que serão posteriormente eliminados pelo reto (1). No cólon, o segmento proximal mistura e absorve líquidos, enquanto o segmento distal realiza contrações peristálticas e movimentos em massa para expelir as fezes (1).
Modulação Extrínseca da Função do TGI
Ao contrário de outros órgãos, o TGI está continuamente em contato com o ambiente externo (1). Por essa razão, existem diversos mecanismos de proteção que previnem danos causados por alimentos, fármacos, toxinas ou microrganismos infecciosos (1). A mucosa intestinal possui populações de linfócitos e plasmócitos na lâmina própria e no epitélio, complementadas por cadeias de linfonodos, que impedem a entrada de agentes nocivos na circulação (1). Adicionalmente, todos os fármacos e toxinas absorvidas para a corrente sanguínea são filtrados e destoxificados no fígado por meio da circulação venosa portal (1).
Classificação Geral das Doenças Gastrointestinais
As doenças gastrointestinais podem ser classificadas de acordo com as funções que afetam:
- Doenças que alteram a assimilação dos nutrientes (1).
- Doenças que interferem na eliminação dos restos alimentares (1).
- Doenças que geram problemas nas atividades que sustentam funções básicas (1).
Anamnese: Avaliação dos Sintomas
A anamnese é crucial para diferenciar as condições gastrointestinais.
- Sintomas de curta duração geralmente resultam de infecções, inflamação aguda, exposição a toxinas ou isquemia (1).
- Sintomas de longa duração podem indicar inflamação crônica, neoplasia maligna ou distúrbios intestinais funcionais (1).
- Sintomas exacerbados por refeições sugerem obstrução mecânica, isquemia, Doença Inflamatória Intestinal (DII) ou distúrbios intestinais funcionais (1). Em contraste, sintomas ulcerosos podem ser aliviados por alimentos ou antiácidos (1).
- Distúrbios funcionais são frequentemente agravados pelo estresse (1).
- Despertares súbitos durante a noite são sugestivos de doenças orgânicas, e não funcionais (1).
- Sintomas obstrutivos com histórico de cirurgia abdominal podem indicar a presença de aderências (1).
- Fezes moles após gastrectomia ou colecistectomia são indicativas de síndrome de dumping (1).
Exame Físico
O exame físico fornece informações importantes para o diagnóstico:
- Febre é um indicativo de inflamação ou neoplasia (1).
- A ortostase pode ser causada por sangramento significativo, desidratação, sepse ou neuropatia autonômica (1).
- A avaliação de pulmões e coração é essencial para descartar doenças cardiorrespiratórias como causa de dor abdominal e náuseas (1).
- Distúrbios metabólicos e da função motora do intestino estão associados à neuropatia periférica (1).
- A ausculta pode detectar sopros ou atritos indicativos de doença vascular ou tumores hepáticos (1). O desaparecimento de ruídos peristálticos sugere um íleo paralítico, enquanto sons hiperativos agudos caracterizam obstrução intestinal (1).
- A isquemia intestinal causa dor intensa com pouca hipersensibilidade à palpação (1).
- Pacientes com dor musculoesquelética na parede abdominal relatam hipersensibilidade durante as manobras de Valsalva ou de elevação da perna estendida (1).
Exames Laboratoriais
Alguns exames laboratoriais são úteis no diagnóstico:
- Leucocitose, aumento da velocidade de hemossedimentação (VHS) e da Proteína C Reativa (PCR) estão associados à inflamação (1). A leucopenia sugere infecções virêmicas (1).
- O teste de gravidez deve ser considerado em mulheres com náuseas inexplicáveis (1).
Endoscopia e Colonoscopia (+)
A endoscopia pode diagnosticar causas de sangramento, dor, náuseas, perda de peso, distúrbio da função intestinal e febre (1). A endoscopia alta avalia o esôfago, o estômago e o duodeno, enquanto a colonoscopia avalia o cólon e o íleo distal (1).
A endoscopia alta é recomendada em suspeitas de doença ulcerosa, esofagite, câncer, má absorção e esôfago de Barrett, devido à possibilidade de visualizar e biopsiar qualquer anormalidade detectada (1). A colonoscopia é indicada no rastreamento de câncer colorretal e na vigilância com biópsia de colites secundárias a DII, infecções, isquemia e irradiação (1).
Sintomas Comuns e Suas Causas
Causas Comuns dos Sintomas Gastrointestinais (1)
Dor Abdominal | Náuseas e Vômitos | Diarreia | Hemorragia Digestiva | Icterícia Obstrutiva |
Apendicite | Fármacos | Açúcares mal absorvidos | Varizes | Cálculos dos ductos biliares |
Infecção | Infecção Entérica | Doença Inflamatória Intestinal (DII) | DII | Colangiocarcinoma |
Doença Ulcerosa | Esofagite | Colite Infecciosa | Diverticulite (+) | Tumor Pancreático |
Cálculos dos Ductos Biliares | Gestação | Distúrbio Intestinal Funcional | Lesões Vasculares | Estenose da Ampola |
Doença da Vesícula Biliar | Doença Celíaca | Neoplasias | Hemorroidas | Carcinoma da Ampola |
Obstrução do TGI | Doença Endócrina | Colite Microscópica | Fissuras | Colangite |
Pancreatite | Cinetose | Isquemia | ||
Distúrbios Motores | Hipertireoidismo | DII (+) | ||
DII | Doença do Sistema Nervoso Central | |||
Colangite | Isquemia | |||
Diverticulite (+) | DII | |||
Distúrbio Intestinal Funcional | Doença Vascular | |||
Doença Ulcerosa | Tumor Endócrino | |||
Infecção Entérica | Causas Ginecológicas | |||
Distúrbio Intestinal Funcional | Cálculo Renal | |||
Neoplasias |
Dor Abdominal
Em geral, a dor visceral localiza-se na linha média e é difusa, enquanto a dor parietal é bem delimitada e descrita com precisão (1).
Pirose
Nos casos clássicos, a pirose é causada pelo refluxo gastroesofágico (1). Cerca de 40% da população geral relata quadros de pirose intermitente (1).
Náuseas e Vômitos
Podem ser causados por doenças gastrointestinais, fármacos, toxinas, infecções, doenças endócrinas, distúrbios do labirinto e doenças do Sistema Nervoso Central (SNC) (1).
Alterações dos Hábitos Intestinais: Constipação (+) e Diarreia (+)
A constipação é geralmente referida como evacuações infrequentes, esforço para evacuar, eliminação de fezes duras ou sensação de evacuação fecal incompleta (1). A diarreia é caracterizada por evacuações frequentes, eliminação de fezes moles ou líquidas, com urgência e sensação de evacuação incompleta (1).
Hemorragia Digestiva
Pode ocorrer em qualquer órgão do TGI (1). A hemorragia digestiva alta causa melena ou hematêmese, enquanto a hemorragia digestiva baixa resulta na eliminação de fezes vermelho-vivo ou marrons, podendo haver também a presença de sangue oculto nas fezes (1).
Intolerância à Lactose (+)
É a síndrome de má absorção mais comum, causada pela deficiência de lactase, resultando em flatulências e diarreia após a ingestão de laticínios, mas sem outros efeitos adversos significativos (1).
Alterações do Trânsito Gastrointestinal
A alteração do trânsito gastrointestinal pode ser secundária a uma obstrução mecânica; no entanto, o retardo da propulsão também ocorre quando a função motora está anormal (1). A acalasia caracteriza-se por redução da peristalse do corpo do esôfago e relaxamento incompleto do esfíncter esofágico inferior (1). A gastroparesia é o prolongamento sintomático do esvaziamento gástrico em consequência de uma motilidade gástrica prejudicada (1). A constipação com trânsito lento é causada por uma alteração da propulsão colônica, podendo também ser resultado de anormalidades do trato de saída do intestino, incluindo o prolapso retal (1).
Alterações Imunes
Alguns distúrbios gastrointestinais são causados por anormalidades na função imune do intestino (1).
Fluxo Sanguíneo Anormal
Diferentes regiões do TGI apresentam diferentes riscos para lesões isquêmicas em consequência da redução da circulação sanguínea (1).
Degeneração Neoplásica
Todas as regiões do TGI são suscetíveis a variados graus de degeneração maligna (1).
Distúrbios Sem Anormalidades Orgânicas Evidentes
Os distúrbios mais comuns sem anormalidades orgânicas evidentes são a Síndrome do Intestino Irritável (SII), dispepsia funcional e pirose funcional (1). Geralmente, essas condições não apresentam anormalidades em exames bioquímicos ou em análises estruturais, sendo evidenciadas por alterações na função motora intestinal (1).
Tratamento
Algumas abordagens terapêuticas incluem:
- O gengibre e as técnicas de acupressão e acustimulação (acupuntura) foram recomendados para tratar as náuseas (1).
- A piridoxina foi estudada para o tratamento de náuseas do primeiro trimestre da gestação (1).
- Preparações fitoterápicas como o 5-TWS (iberogast) podem ser úteis no tratamento da dispepsia funcional e da SII (1).
Referências Bibliográficas
- JAMESON, J. L. et al. Medicina Interna de Harrison. 20. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2021. 3522 p.