Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica (DHGNA): Diagnóstico e Abordagem Terapêutica
Introdução
A Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica (DHGNA) engloba um espectro de condições que variam desde uma simples esteatose hepática (acúmulo de gordura no fígado) até a esteato-hepatite não alcoólica (NASH), que representa a forma agressiva e inflamatória da DHGNA (4, 6). A DHGNA é caracterizada pelo acúmulo de gordura no fígado, resultante de diversos distúrbios, excluindo causas secundárias como abuso de álcool e desordens hereditárias (2).
É considerada a manifestação hepática da síndrome metabólica (4), que geralmente inclui obesidade, diabetes mellitus tipo 2 (DM2) e dislipidemia (1). A DHGNA é uma das principais causas de danos hepáticos globalmente (1) e sua prevalência é alarmante, sendo considerada a epidemia hepática da atualidade (6). Estima-se que afete 34% a 46% da população adulta e 70% a 80% dos indivíduos obesos em países ocidentais (6). É a principal causa de doenças hepáticas no mundo, com previsão de se tornar a maior indicação de transplantes hepáticos (7). Mais da metade dos pacientes com DM2 apresentam algum grau de excesso de gordura no fígado.
Fisiopatologia
A história natural da DHGNA progride da esteatose simples para estágios mais complexos:
- Esteatose: Caracterizada por um aumento do conteúdo hepático de gordura (>5%) (4, 6).
- Esteato-hepatite (NASH): Caracteriza-se pela balonização celular e inflamação lobular em pacientes com esteatose (4, 6).
- Esteato-hepatite com Fibrose: Ocorre deposição de colágeno (4, 6).
- Cirrose: Estágio avançado da doença, com evidência de septos grossos de fibrose em ponte, desestruturando a arquitetura acinar do fígado (4, 6).
A DHGNA é resultado de múltiplos fatores, incluindo:
- Aumento da mobilização de ácidos graxos do tecido adiposo.
- Aumento da síntese hepática de ácidos graxos.
- Redução na oxidação dos ácidos graxos.
- Aumento na produção de triglicerídeos.
- Aprisionamento de triglicerídeos no fígado.
Um dos principais mecanismos subjacentes à DHGNA é a resistência à insulina, que gera um aumento na lipólise, liberando ácidos graxos livres na circulação. Estes se dirigem ao fígado, juntamente com a glicose da alimentação, onde ocorre a “lipogênese de novo“, responsável pelo aumento da gordura hepática e pela inibição da liberação dessa gordura via inibição do VLDL (5). É importante ressaltar que a maior parte dos pacientes com NASH morrem por doenças cardiometabólicas e não por doenças hepáticas (5).
Microbiota Intestinal
A microbiota intestinal é capaz de afetar o balanço entre as vias pró e anti-inflamatórias através da conexão da veia porta, que liga o intestino diretamente ao fígado (1). A conexão entre microbiota e DHGNA pode ocorrer por:
- Alteração do balanço entre a energia consumida e a gasta.
- Promoção de inflamação hepática devido ao dano à integridade intestinal (1).
- Alteração do metabolismo e da liberação de metabólitos pela microbiota (1).
Pacientes com DHGNA apresentam menor expressão de “zona ocludens-1” (ZO-1), uma das proteínas responsáveis pelas tight junctions, resultando em maior permeabilidade intestinal e consequente aumento dos níveis de endotoxina (1). Adicionalmente, a microbiota associada à DHGNA é composta por bactérias geradoras de etanol. Essa produção aumentada de etanol nos pacientes ativa a sinalização do fator nuclear Kβ (NF-kβ), gerando danos teciduais, prejudicando a função da barreira intestinal e contribuindo para maior exposição à endotoxemia (4).
Endotoxinas bacterianas passam para o fígado. Os lipopolissacarídeos (LPS) estimulam as células de Kupffer, ativando os toll-like receptors (TLRs). Esses TLRs são receptores que reconhecem padrões de moléculas associadas a patógenos (PAMPs) e danos associados a moléculas padrões (DAMPs), que em pacientes saudáveis estariam inativos (1). No fígado de pacientes com DHGNA, os mecanismos de detoxificação são diminuídos, tornando-o uma fonte constante de espécies reativas de oxigênio, que potencialmente geram danos aos hepatócitos e inflamação hepática, podendo evoluir para esteato-hepatite (4).
Outra alteração encontrada relativa à microbiota é um aumento nas concentrações fecais de “2-butanona” e “4-metil-2-pentanona” em comparação a pessoas saudáveis, sendo esses metabólitos geradores de toxicidade hepatocelular (4). A disbiose é capaz de afetar o metabolismo dos ácidos biliares, incluindo sua conjugação no fígado, reabsorção no íleo terminal, desconjugação no intestino delgado, conversão para bile secundária no cólon e transporte na circulação êntero-hepática (1). Qualquer alteração no metabolismo da bile pode gerar resultados metabólicos e imunes negativos, contribuindo para DHGNA (2). O excesso de acetato e propionato gera um excesso de energia, podendo favorecer a esteatose.
Diagnóstico
A investigação da DHGNA deve ser realizada em todos os indivíduos com síndrome metabólica (obesidade, hipertensão, DM2 ou pré-diabetes, níveis baixos de HDL e/ou hipertrigliceridemia), com histórico familiar de hepatopatias ou com alteração persistente de transaminases. Estima-se que 5-10% das pessoas com excesso de gordura no fígado apresentem um IMC normal, sendo esse perfil mais comum em mulheres e em pessoas com ascendência oriental.
Observação: A dosagem de enzimas hepáticas para avaliar a esteatose não é um bom método. Estima-se que 30% dos pacientes com a doença tenham enzimas hepáticas dentro dos limites de normalidade. Elas não são bons marcadores da presença de inflamação (esteato-hepatite).
Métodos de Imagem
A presença de esteatose pode ser confirmada por meio de exames de imagem. A ultrassonografia (US) de abdome é o exame inicial de rastreio, embora a esteatose possa passar despercebida em até 20% dos pacientes. A tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM) são métodos com boa sensibilidade para o diagnóstico, porém com maior custo e complexidade.
Fatty Liver Index (FLI) – Método Indireto (Não Diagnóstico)
Baseado em dados de circunferência de cintura, IMC, triglicerídeos e Gama-Glutamil Transferase (GGT), o FLI tem sido validado em estudos com mais de 20.000 indivíduos, sendo eficaz para encaminhamento médico e acompanhamento da severidade da esteatose.
Diagnóstico de Esteato-Hepatite
Atualmente, não existem métodos não invasivos para identificar pacientes com esteato-hepatite sem fibrose. Apenas a biópsia hepática é capaz de diferenciar a esteatose da esteato-hepatite sem fibrose. Por ser um exame invasivo, é utilizada apenas em casos especiais.
Diagnóstico de Fibrose
A pesquisa de fibrose deve ser realizada em todos os pacientes com diagnóstico de DHGNA por algum método de imagem. Diversas ferramentas avaliam a fibrose, sendo os escores clínicos laboratoriais para estratificação de risco de fibrose avançada/cirrose os mais simples. Dentre eles, o FIB-4 (The fibrosis-4 index for liver fibrosis) é o mais utilizado. Uma sugestão é, se FIB-4 ≥1,3, realizar a elastografia hepática.
No Brasil, as elastografias hepáticas são o melhor método para o diagnóstico e a quantificação de fibrose hepática. Elas podem ser realizadas por métodos ultrassonográficos, sendo a elastografia transitória (FibroScan) a mais validada. As elastografias estudam a rigidez hepática de forma não invasiva e indolor. A presença de fibrose aumenta progressivamente a rigidez hepática, permitindo que sejam métodos quantitativos de fibrose.
Estágios de Fibrose (METAVIR)
- F0: Ausente
- F1: Leve
- F2: Moderada
- F3: Avançada
- F4: Cirrose
Tratamento
Não há um tratamento padronizado que possa ser rotulado como padrão ouro (6). A mudança no estilo de vida, a alimentação e o exercício físico, levando à perda de peso, parecem ser as estratégias mais eficazes (1, 6). A recomendação de dieta para adequação do peso é a estratégia inicial de tratamento (8).
Pacientes sem sinais de esteato-hepatite nem de fibrose devem ser tratados com mudanças no estilo de vida. Não há indicação para o uso de fármacos específicos para o fígado. Já pacientes com esteato-hepatite ou fibrose devem receber tratamento específico para o fígado, com fármacos que devem ser empregados nesses casos.
Tratamento Farmacológico
Até o momento, não existe um tratamento farmacológico definitivo aprovado pela FDA ou pela EMA (1, 7). Têm sido estudados medicamentos que agem nas enzimas que convertem os carboidratos em ácidos graxos e nas enzimas que convertem as gorduras em triglicerídeos (5).
- Agonistas de GLP-1: O GLP-1 é um hormônio intestinal que age via proteína G, estimulando a produção e liberação de insulina e inibindo a secreção de glucagon e ingestão alimentar (5). Agonistas de receptores do GLP-1, como liraglutida e semaglutida, têm sido explorados como possível tratamento para a esteatose hepática, já que são aprovados no tratamento do DM2 (5). Observou-se que esses medicamentos reduzem a esteatose hepática e o dano hepático, principalmente com o uso da semaglutida (5). É importante ressaltar que parte dos efeitos estão relacionados à perda de peso, que ocorre devido à saciedade gerada pelo medicamento (5).
- Inibidores de SGLT2: O SGLT2 é o transportador que capta a glicose nos rins, impedindo sua excreção na urina (glicosúria). Tratamento aprovado para DM2, mostrando efeitos na diminuição da glicemia e perda de peso (5). Na esteatose, canagliflozina e dapagliflozina melhoraram os marcadores hepáticos independentemente da perda de peso e redução da hemoglobina glicada, sendo promissores no tratamento da esteatose (5).
- Outros: Até o momento, não há evidências suficientes para recomendar o uso de metformina, acarbose, inibidores da DPP-4 e insulina com o objetivo de melhorar os desfechos hepáticos.
Terapia Nutricional
O padrão de dieta mediterrânea tem sido o mais recomendado, sendo associado à melhora nos parâmetros da síndrome metabólica e a melhores valores de conteúdo de gordura intra-hepática (11). Um estudo avaliando a dieta do mediterrâneo encontrou que, apesar de induzir uma perda de peso pequena (-3kg), ela proporcionou uma redução na gordura hepática (avaliada por ressonância magnética), além de melhora na GGT, na ALT e na HbA1c (12). Nesse estudo, os participantes consumiram maior quantidade de ácidos graxos mono e poli-insaturados e quase não ingeriram ácidos graxos trans (12).
Em relação à alimentação, o foco do tratamento é na redução calórica e restrição de açúcares simples, ácidos graxos saturados e trans, além de uma dieta rica em fibras e em ácidos graxos mono e poli-insaturados. O café, chá verde, ômega-3 e vitaminas D e E parecem opções promissoras no tratamento (5).
Recomendações Dietéticas Específicas
- Diminuição do consumo de frutose (industrializados) e açúcares: Evidências mostram que o consumo de frutose, principalmente de bebidas industrializadas, possui efeitos deletérios ao fígado devido à sua intensa ação sobre a lipogênese hepática (6). A frutose ativa o ChREBP (carbohydrate response element binding protein), responsável pela transcrição das enzimas FAS, ACC, SCD1, encarregadas da síntese de ácidos graxos (13). Além disso, promove redução da beta-oxidação hepática pela diminuição da abundância de mitocôndrias (13).
- Diminuição no consumo de gorduras saturadas/trans:
- Adequação do consumo de cafeína: O chá verde e o café são chás interessantes para o consumo.
- Diminuição no consumo de álcool: Não existe limite seguro de consumo quando se avaliam seus efeitos sobre a doença hepática. O álcool induz estresse oxidativo e disfunção mitocondrial, o que leva à apoptose e à inflamação (14). Um estudo com 58.927 indivíduos portadores de DHGNA, observados por 4,9 anos, apontou que o consumo de álcool foi um fator independente para o agravamento de fibrose em comparação com aqueles que não consumiam bebidas alcoólicas (15), reforçando a importância da abstinência de álcool.
- Avaliar Vitamina D: A suplementação de Vitamina D é uma opção promissora (5).
Perda de Peso
A intervenção nutricional resultando em uma perda de peso de 3-5% é capaz de reduzir a esteatose, enquanto uma perda >10% é recomendada para a melhora da esteato-hepatite e da fibrose (6, 9, 10). Alguns autores concluíram que a frequência às consultas, associada a estratégias que favoreçam a adesão ao tratamento, é preponderante na perda de peso, independentemente da composição de macronutrientes da dieta.
Proteínas
Com o objetivo de evitar a perda de massa muscular, recomenda-se o consumo de 1,2 g/kg de peso ajustado/dia, associado à prática regular de atividades físicas (10).
Probióticos e Prebióticos
A melhora do ambiente intestinal é fundamental. Imagens de ultrassonografia mostraram uma melhora significativa da DHGNA com o uso de probióticos e simbióticos (1). Diversas meta-análises demonstraram que terapias visando a melhora da microbiota foram capazes de melhorar marcadores como AST, ALT, TG, CT, HDL-C, LDL-C e TNF-α (é controverso, mas no geral existem benefícios) (1).
Os probióticos mais citados em estudos são compostos de Lactobacilli, Streptococci e Bifidobacteria (1).
Sugestões de probióticos:
- VSL #3 (Visbiome) + Lactobacillus bulgaricus + Streptococcus thermophilus (3)
- L. Plantarum + Bifidobacteria Longum + L. rhamnosus (3)
- Flora 5 – Cifarma ou Simfort – Vitafor (ou Lactobacilus purê ou manipulado)
- Composição: L. Acidophilus – 4×10^9 UFC; L. Casei – 4×10^9 UFC; L. Lactis – 4×10^9 UFC; B. Bifidum – 4×10^9 UFC; B. Lactis – 4×10^9 UFC.
- Excipiente Goma Acácia Q.S.P – 1 cápsula vegetal.
- Ingerir antes de dormir.
- Indicação: perspectiva da redução do fígado gorduroso não alcoólico, SIBO. Observar HOMA-IR, AST, ALT, GGT, pois exerce influência na resistência à insulina.
Ômega-3
A suplementação de 2-4 cápsulas/dia de ômega-3 é uma possibilidade para a esteatose hepática. O objetivo é estimular a metabolização de resolvinas, preotectinas e maresinas, estimulando assim a redução da inflamação hepática.
Exercício Físico
- Acúmulo de 20-60 minutos de atividade de moderada intensidade utilizando grandes grupos musculares, 5 vezes por semana (6).
- 250 minutos de atividade física objetivando a perda de peso (6).
- Exercícios de resistência moderada a alta intensidade, três vezes por semana, para melhora da sensibilidade à insulina (6).
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