Abordagem Clínica da Hiperuricemia e Gota
A gota é uma doença inflamatória crônica decorrente do metabolismo anormal das purinas, que resulta em níveis elevados de ácido úrico no sangue, condição conhecida como hiperuricemia (5, 8). Quando a concentração de ácido úrico excede seu limite de solubilidade, ocorre a deposição de cristais de urato monossódico nas articulações e tecidos adjacentes, desencadeando crises de artrite aguda (3, 7, 8, 9). A progressão da gota pode ser classificada em quatro estágios fisiopatológicos: hiperuricemia assintomática (sem evidências de deposição de cristais), deposição de cristais sem sintomas de gota, deposição de cristais com sintomas agudos de gota e gota avançada crônica, caracterizada por artrite gotosa e erosões radiográficas (4).
Fatores de Risco e Prevalência
A gota é mais prevalente no sexo masculino e apresenta um forte caráter familiar (9). Um estudo apontou uma prevalência de 3,9% na população geral, com um aumento significativo para 12,6% em indivíduos acima de 80 anos (9). Diversos fatores de risco estão associados à hiperuricemia e à gota, incluindo:
- Obesidade
- Consumo de álcool
- Hipertensão
- Diabetes Mellitus
- Síndrome Metabólica
- Doença Renal Crônica
- Uso de diuréticos
Fisiopatologia
A gota manifesta-se como um quadro inflamatório articular agudo e recorrente, provocado pelo depósito de cristais de urato no espaço intrassinovial. Nesse processo, os macrófagos sinoviais reconhecem esses cristais e desencadeiam uma resposta inflamatória local (7, 9). Clinicamente, a crise de gota é caracterizada pelo início súbito de dor artrítica intensa e localizada, que geralmente começa no hálux (primeira articulação metatarsofalângica – podagra) e pode se estender para as pernas. A dor atinge seu pico máximo em 8 a 12 horas, e sintomas sistêmicos como febre, calafrios e mal-estar também podem estar presentes (3, 5). Pode-se observar eritema cutâneo que se estende para além da articulação, assemelhando-se à celulite (3). Manifestações claras de gota são prováveis quando o nível sérico de ácido úrico é superior a 9,0 mg/dL e a excreção urinária de ácido úrico ultrapassa 800 mg/dia (7).
A longo prazo, o depósito crônico desses cristais pode destruir as estruturas articulares e formar os tofos gotosos, localizados no tecido subcutâneo (9). Um estudo demonstrou que os tofos aumentam a apoptose de osteoblastos, reduzindo a população dessas células na articulação acometida e contribuindo para a erosão óssea progressiva (9). Além disso, a cristalização dos sais de urato excretados pelo rim pode levar à formação de cálculos nas vias urinárias e ao comprometimento futuro da função renal (9).
Dietas que levam à cetose associadas ao jejum podem precipitar a crise de gota (5). Estudos epidemiológicos sugerem uma associação entre a gota e a dislipidemia, diabetes mellitus e síndrome de resistência à insulina (5).
Diagnóstico
O diagnóstico de certeza da gota é estabelecido pela identificação de cristais intracelulares em forma de agulha ou espiculados, com birrefringência negativa à luz polarizada, no líquido sinovial ou em material tofáceo (3).
Exames Laboratoriais
A hiperuricemia é definida por valores de ácido úrico plasmático acima de 6,8 mg/dL (3, 4), valor que excede a solubilidade do urato monossódico (UMS). O ácido úrico é o produto do catabolismo da purina em seres humanos, liberado quando o DNA e o RNA são degradados por células em processo de morte (1). A maior parte do ácido úrico é sintetizada no fígado e na mucosa intestinal, com dois terços excretados pelos rins e um terço pelo trato gastrointestinal (1). Embora a maioria das pessoas com hiperuricemia não desenvolva gota (7), quanto mais elevado o nível sérico de ácido úrico, maior a probabilidade de um ataque de artrite gotosa aguda (1).
Monitoramento Laboratorial
O monitoramento da gota e do tratamento quimioterápico de neoplasias é realizado por meio de exames bioquímicos. A Tabela 1 sumariza as indicações, contraindicações, orientações de coleta, material biológico, método de análise e interferências dos exames de ácido úrico sérico e urinário.
Tabela 1 – Indicações e Contraindicações de Exames de Ácido Úrico (2)
Exame Laboratorial | Indicação de Solicitação | Contraindicação | Orientação para Coleta | Material Biológico | Método de Análise | Interferências |
---|---|---|---|---|---|---|
Ácido Úrico Sérico | Avaliação de artrite gotosa; consumo de álcool; acompanhamento de nefropatias | Não há | Jejum de 4h a 8h | Soro | Colorimétrico enzimático. Uricase | Álcool, cafeína, hipertrigliceridemia, uso de fármacos. |
Ácido Úrico Urinário | Investigação de gota e nefropatias | Não há | Urina 24h | Urina 24h | Uricase | Níveis séricos elevados de ácido ascórbico, uso de fármacos. |
Valores de Referência:
Os valores de referência para o ácido úrico sérico e urinário são importantes para a interpretação diagnóstica e monitoramento.
Valores de Referência – Sérico:
- Homens: 2,5-8,0 mg/dL (1) e 3,5-7,2 mg/dL (2)
- Mulheres: 1,9 a 7,5 mg/dL (1) e 2,6-6,5 mg/dL (2)
- Valores acima de 6,8 mg/dL podem ser considerados hiperuricemia (3).
Valores de Referência – Urinário (Urina de 24h):
- Homens, 24h: < 800 mg/dia (2)
- Mulheres, 24h: < 750 mg/dia (2)
- 250-750 mg/dia (1)
Alterações nos Valores de Ácido Úrico
Valores Séricos Diminuídos:
Podem ocorrer com a utilização de fármacos, pela doença celíaca, em casos de neoplasias, acidose, acromegalia, diabetes mellitus, dieta pobre em purinas, doença de Wilson, recidiva de anemia perniciosa, síndrome de Fanconi, uremia e xantinuria (1, 2).
Valores Urinários Diminuídos:
Podem estar associados ao alcoolismo crônico, envenenamento por chumbo, obstrução urinária e glomerulopatias crônicas (2).
Valores Urinários Aumentados:
Podem indicar dieta rica em purinas, doenças hepáticas, gota, leucemias e policitemia vera (2).
Causas da Hiperuricemia
Os mecanismos básicos da hiperuricemia são:
- Superprodução: Ocorre em 10% dos pacientes e pode ser resultado de distúrbios mieloproliferativos, doenças malignas, anemias hemolíticas e erros metabólicos que causam aumento da produção de purina e urato (1, 4, 7).
- Baixa Excreção: Afeta 90% dos pacientes e pode ser resultado de insuficiência renal (não se correlaciona com a gravidade da lesão renal), desidratação, cetoacidose diabética, consumo de etanol, uso de diuréticos ou medicamentos específicos (1, 4, 7).
Outras condições que podem aumentar os níveis de ácido úrico incluem acidose metabólica, alcoolismo, aterosclerose, desidratação, dieta hiperproteica, destruição aumentada de proteínas, doença cardíaca, jejum, hipotireoidismo, diabetes mellitus, dieta rica em purinas, nefrolitíase, neoplasias e sarcoidose (2). Praticantes de atividades físicas intensas também podem apresentar níveis mais elevados de ácido úrico (1). Há uma relação entre o excesso de ácido úrico e a disbiose. O ácido úrico é um fator de risco para doenças cardiovasculares e síndrome metabólica, sendo que valores séricos acima de 5,2 mg/dL são considerados um alerta.
Manejo Terapêutico da Gota
A conduta terapêutica da gota envolve tanto o tratamento farmacológico quanto a terapia nutricional, visando o controle dos níveis de ácido úrico e a prevenção de crises.
Tratamento Farmacológico:
A medida da uricosúria de 24 horas é indicada para caracterizar dois grupos principais de pacientes: os hipoexcretores ou normoexcretores (<800 mg em 24h) ou hiperprodutores (3). Essa distinção é essencial para a tomada de decisão do agente terapêutico, que pode ser um uricosúrico ou um inibidor de síntese (3).
Uma vez estabilizado o quadro agudo, podem ser introduzidas medicações que reduzem a síntese de ácido úrico, como o alopurinol e o febuxostate, ou, desde que não exista histórico de calculose renal, medicações que aumentam a excreção renal, como a benzobromarona (9). Embora algumas guidelines sugiram o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), colchicina ou corticosteroides para as crises agudas (4), o tratamento geralmente foca em fármacos que inibem a síntese de ácido úrico.
- Alopurinol: Inibe a produção de ácido úrico e é considerado a primeira linha de tratamento (4, 5). A dose recomendada para alcançar uma concentração de urato sérico <6 mg/dL deve ser, no máximo, de 600 mg/dia, sendo esse valor reduzido a 400 mg caso o clearance de creatinina esteja entre 30-60 mL/min (6).
- Probenecida / Sulfimpirazona: Diminuem os níveis séricos de ácido úrico promovendo uma maior excreção pelos rins (5).
- Colchicina: Demonstrou aliviar dores articulares, mas não tem relação direta com o metabolismo do ácido úrico (5).
Terapia Nutricional:
Aparentemente, dois terços da carga diária de purinas resultam do turnover celular endógeno, e apenas um terço é proveniente da dieta (5, 7). A orientação dietética atual visa o controle rigoroso do peso e o tratamento concomitante das alterações que compõem a síndrome metabólica (9).
Estratégias Dietéticas
- Emagrecimento: A perda de peso, apesar de pouco eficaz isoladamente, mostrou-se capaz de melhorar os níveis de urato dos pacientes (4).
- Gorduras Saturadas: A diminuição no consumo de gorduras saturadas parece contribuir para um melhor controle da hiperuricemia e das crises de gota (3). O mecanismo provável para isso é a melhora da resistência à insulina periférica, que promove um aumento da excreção renal de urato (3).
- Proteína Animal: O consumo elevado de carnes e frutos-do-mar está associado a níveis mais elevados de ácido úrico devido à sua maior quantidade de purinas (3, 5). Uma metanálise mostrou que o consumo elevado de carne vermelha está associado ao aumento na incidência da hiperuricemia e da gota (8). Outra metanálise indicou que o consumo de frutos-do-mar está associado a uma maior incidência de gota e hiperuricemia (8). É importante ressaltar que o problema não é a quantidade total de proteínas. O ovo parece ser protetor para a gota, possivelmente devido ao efeito das cinzas alcalinas (5).
- Líquidos/Hidratação: É recomendada uma maior ingestão de líquidos, auxiliando na maior excreção de ácido úrico pela urina e evitando a formação de cálculos renais (5). Indivíduos com histórico de gota ou cálculos urinários por ácido úrico devem ingerir pelo menos 3 litros de água por dia para aumentar a excreção do ácido úrico, diluir sua concentração urinária e, assim, reduzir a possibilidade de formação de cálculos (9).
- Produtos Lácteos: Produtos lácteos, especialmente os desnatados, parecem ser protetores para a gota, possivelmente devido ao efeito das cinzas alcalinas (5). Uma metanálise mostrou uma relação inversa entre o consumo de produtos lácteos e o risco de hiperuricemia (8), mas ainda não há correlação estabelecida entre os lácteos e a gota (8). O consumo de lácteos é capaz de aumentar a excreção de ácido úrico e xantina (8). O leite, por ser pobre em purinas, em combinação com o efeito uricosúrico da caseína, whey protein e do cálcio, pode levar à diminuição da concentração de urato (8).
- Proteína Vegetal: A proteína vegetal parece ser protetora para a gota, possivelmente devido ao efeito das cinzas alcalinas (5). É interessante ressaltar que hortaliças e fontes de proteína vegetal, mesmo que ricas em purinas, não foram associadas ao aumento do risco de gota, diferentemente da crença popular (3). Uma metanálise não mostrou relação entre o consumo de vegetais ricos em purinas e o aumento do risco de gota (8). Esse fenômeno pode ser explicado, pelo menos em parte, pela menor biodisponibilidade das purinas nos vegetais (8). O consumo de soja demonstrou um efeito protetor para a hiperuricemia e a gota em metanálises (8).
- Vitamina C: O consumo de vitamina C pode reduzir a uricemia e a incidência de gota (3). Um possível mecanismo é a concorrência pela reabsorção renal e o aumento da filtração glomerular de urato (3). Um estudo demonstrou que a suplementação diária de 500 mg de vitamina C por dois meses reduziu significativamente a uricemia em 0,5 mg/dL (3). Contudo, alguns estudos sugerem que esse efeito ocorre apenas em pessoas saudáveis, e não há ainda um consenso sobre isso (4).
- Café/Chá: O café parece ser protetor para a gota (5, 8), possivelmente devido ao efeito das cinzas alcalinas (5). É possível que a cafeína iniba competitivamente a enzima xantina oxidase, aumente o fluxo renal e a excreção urinária de urato (8). Além disso, outro componente do café, o fenol ácido clorogênico, é capaz de melhorar a resistência à insulina e, consequentemente, diminuir os níveis séricos de urato (8). Os mesmos efeitos não foram encontrados no consumo de chá e/ou da cafeína isolada (3).
- Frutose: Uma das condutas mais importantes no paciente com gota é a restrição de alimentos ultraprocessados, especialmente os ricos em frutose (3). O metabolismo da frutose estimula a produção de ácido úrico via depleção de ATP e produção de AMP, resultando no aumento da degradação da purina e, consequentemente, na produção de ácido úrico (3, 8). Além disso, a frutose afeta a excreção de ácido úrico no lúmen intestinal, corroborando para o aumento de espécies reativas de oxigênio (ERO) derivadas da produção de NADPH (3). É importante ressaltar que tanto o estresse oxidativo quanto a lipogênese de novo e o acúmulo de gordura hepática, favorecidos pelo excesso de frutose, estão relacionados com a maior produção de citocinas pró-inflamatórias e resistência à insulina, estreitando a relação entre gota e doenças cardiovasculares (3). Uma metanálise mostrou que o consumo elevado de bebidas açucaradas, principalmente com frutose, está associado ao aumento na incidência da hiperuricemia e da gota (8).
- Álcool: Uma metanálise mostrou que o consumo de álcool está positivamente associado ao aumento do risco de gota e hiperuricemia (8, 9). Dentre os mecanismos propostos destacam-se: o estímulo à produção hepática de purina pelo metabolismo do etanol através da degradação do ATP para a formação do AMP; a inibição da conversão do fármaco hipouricemiante alopurinol em seu metabólito ativo, o oxipurinol, pelo etanol; a baixa aderência de etilistas crônicos às dietas e aos tratamentos de longo prazo; e a redução da excreção renal induzida pela acidose lática, secundária à intoxicação alcoólica aguda (8, 9). O consumo de bebidas alcoólicas deve ser reduzido, especialmente o de bebidas fermentadas (cerveja, vinho). A cerveja, que geralmente tende a ser consumida em maior quantidade, é a que parece exercer maiores efeitos negativos sobre a hiperuricemia (3, 9).
- Dieta Cetogênica: Segundo a sociedade britânica de reumatologia, dietas cetogênicas devem ser evitadas por pacientes com gota (3).
Referências Bibliográficas:
- WILLIMSON, M. A.; SNYDER, L. M. Wallach – Interpretação de Exames Laboratoriais. 10. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. 1225 p.
- CALIXTO-LIMA, L.; REIS, N. T. Interpretação de Exames Laboratoriais Aplicados à Nutrição Clínica. 1. ed. Rio de Janeiro: Rubio, 2012. 490 p.
- COMINETTI, C.; COZZOLINO, S. Bases Bioquímicas e Fisiológicas da Nutrição nas Diferentes Fases da Vida, na Saúde e na Doença. 2. ed. Manole, 2020. 1369 p.
- DALBETH, N.; MERRIMAN, T. R.; STAMP, L. K. Gout. The Lancet, v. 388, n. 10055, p. 2039–2052, 2016.
- MAHAN, L. K.; ESCOTT-STUMP, S.; RAYMOND, J. L. Krause Alimentos, Nutrição e Dietoterapia. 13. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. 1227 p.
- STAMP, L. K.; DALBETH, N. Prevention and treatment of gout. Nature Reviews Rheumatology, v. 15, n. 2, p. 68–70, 2019. Disponível em: http://journals.lww.com/01709760-201811000-00001. Acesso em: 16 jun. 2025.
- ROSS, A. C. et al. Nutrição Moderna de Shills na Saúde e na Doença. 11. ed. São Paulo: Manole, 2016. 1642 p.
- LI, R.; YU, K.; LI, C. Dietary factors and risk of gout and hyperuricemia: A meta-analysis and systematic review. Asia Pacific Journal of Clinical Nutrition, v. 27, n. 6, p. 1344–1356, 2018.
- SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de Alimentação, Nutrição & Dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.