Intolerância à Lactose: Diagnóstico, Fisiopatologia e Abordagens Terapêuticas


Intolerância à Lactose: Diagnóstico, Fisiopatologia e Abordagens Terapêuticas


Introdução

A intolerância à lactose é uma condição comum caracterizada pela má digestão da lactose, o principal açúcar do leite e seus derivados, devido à baixa atividade da enzima lactase no intestino delgado (1, 3). Quando essa má absorção resulta em sintomas gastrointestinais, a condição é denominada intolerância à lactose (1).


Fisiopatologia da Intolerância à Lactose

A Lactose e seu Metabolismo

A lactose é um dissacarídeo singular, encontrado exclusivamente no leite e seus derivados, incluindo leite, sorvete, queijos, iogurtes e até mesmo no whey protein concentrado (3). Para ser absorvida, a lactose precisa ser clivada em glicose e galactose pela lactase, uma enzima presente na membrana apical ou da borda em escova dos enterócitos, principalmente na porção jejunal do intestino delgado (1).

Causas e Mecanismos

Com o avançar da idade, a maioria dos indivíduos apresenta um declínio fisiológico na atividade da enzima lactase, cujo nível na idade adulta se aproxima de 10% do encontrado durante a lactação (1, 2). Essa condição é denominada hipolactasia primária do adulto, e esses indivíduos são chamados de “lactase não persistente” (LNP), havendo também os “lactase persistentes” (LP) (1).

Outras causas incluem a hipolactasia secundária, que ocorre devido a doenças que danificam a membrana de borda em escova do intestino delgado, como doenças inflamatórias intestinais (retocolite ulcerativa, síndrome do intestino irritável, doença celíaca, doença de Crohn e enteropatia induzida por proteínas alimentares), fibrose cística e enterites (infecciosas, por giardíase). Nesses casos, a deficiência de lactase é geralmente temporária e reversível (4). A intolerância congênita é bastante rara e causa sintomas severos desde o nascimento (4).

Quando a lactose não é digerida no intestino delgado, ela chega intacta ao cólon, onde desencadeia um aumento do gradiente osmótico local, provocando influxo de água e eletrólitos com consequentes sintomas de diarreia (1). Além disso, parte desse dissacarídeo é fermentada pelas bactérias colônicas, produzindo ácidos graxos de cadeia curta (ácido propiônico, acético e butírico) e produtos gasosos (dióxido de carbono e hidrogênio), os quais causam desconforto, distensão abdominal e flatulências (1, 2). Em alguns casos, a redução do dióxido de carbono a metano por certas cepas de bactérias pode resultar na redução da velocidade do trânsito intestinal com consequente obstipação (1).

Geralmente, os sintomas se iniciam entre 30 minutos e 2 horas após a ingestão do alimento contendo lactose (1). Gestantes e pacientes com hipotireoidismo não tratado podem apresentar uma redução dos sintomas devido à redução da motilidade intestinal (1).

Fatores de Risco e Genéticos

No Brasil, estima-se uma prevalência de 57% de não persistência de lactase para brancos e mulatos, e 80% para os negros (1). Pessoas com ascendência da Europa Setentrional, tribos nômades da África Subsaariana e da Arábia, possuem uma chance maior de manter as enzimas lactase por toda a vida (2). A síntese da enzima lactase é determinada pelo gene LCT (1). Mutações graves nesses genes resultam em deficiência congênita de lactase (1).

Sinais e Sintomas

Geralmente, os sintomas se limitam ao trato gastrointestinal e são, em geral, leves (3). Incluem:

  • Diarreia espumosa (3)
  • Distensão abdominal (3)
  • Flatulências (3)
  • Cólicas intestinais (3)
  • Borborigmos (ruídos pelo deslocamento de gases e líquidos) (4)
  • Cefaleia (4)

A ocorrência e intensidade dos sintomas dependem da quantidade de lactose consumida, da matriz do alimento e da sensibilidade do indivíduo (4).


Diagnóstico da Intolerância à Lactose

O diagnóstico da intolerância à lactose é realizado por meio de métodos indiretos, sendo o mais utilizado o teste da carga de lactose com avaliação da glicemia ou da concentração de hidrogênio respiratório (1).

Teste de Glicemia

O teste envolve a administração de uma carga de lactose (geralmente 50g, equivalente à quantidade encontrada em 1 litro de leite) após jejum noturno, seguida da avaliação da glicemia (1). O aumento da glicemia indica que glicose foi produzida a partir da hidrólise da lactose. A atividade de lactase é considerada alta quando ocorre aumento de 20 mg/dL na glicemia 30 minutos após a ingestão de 50g de lactose. Aumentos inferiores a 20 mg/dL são considerados evidência de má-absorção de lactose (1).

Teste de Hidrogênio Expirado

Nesse teste, o aumento nas concentrações expiradas de hidrogênio indica má digestão de lactose e fermentação colônica da lactose não digerida (1). Aumentos superiores a 20 ppm nos níveis de hidrogênio medidos durante 3 a 6 horas após a ingestão inferem má-absorção (1). A avaliação do hidrogênio expirado é considerado o método de escolha para o diagnóstico, pois, além de ser mais sensível e específico, é rápido, não invasivo e apresenta o melhor custo-benefício (1).

Diagnóstico Diferencial

É crucial diferenciar a intolerância à lactose de outras condições com sintomas semelhantes:

  • Alergia à proteína do leite de vaca: Queixas de sintomas sistêmicos relacionados ao consumo de laticínios, como melena ou enterorragia, mialgia, artralgia, cefaleia, tontura, letargia, úlceras orais, acne, eczema, prurido, dermatites, rinites e asma devem ser consideradas sinais de alarme e necessitam investigação de alergia à proteína do leite de vaca (1).
  • Doença Celíaca: Pacientes com doença celíaca frequentemente desenvolvem sintomas sugestivos de má-absorção de lactose, sendo muitas vezes necessário realizar o diagnóstico para diferenciação (1). A intolerância à lactose em pacientes celíacos pode ocorrer tanto por predisposição genética quanto secundária a uma lesão vilositária intestinal jejunal, já que a lactase é expressa na membrana apical dos enterócitos (1).
  • Síndrome do Intestino Irritável (SII): Pacientes com SII tendem a ter mais intolerância à lactose do que a população geral (1). Além disso, indivíduos intolerantes com SII desenvolvem significativamente mais sintomas (1).

Conduta Clínica e Terapia Nutricional

O objetivo do tratamento da intolerância à lactose é a exclusão ou redução da ingestão do dissacarídeo lactose (1).

Tolerância e Consumo Adaptado

Ao contrário de alergias alimentares mediadas por IgE, pessoas intolerantes à lactose podem tolerar certa quantidade de lactose em suas dietas (3). Algumas evidências sugerem que adultos e adolescentes diagnosticados com má-absorção de lactose podem ingerir até 12g de lactose em dose isolada (equivalente a um copo de leite) sem desenvolver sintomas ou com sintomas brandos (1, 3, 4). Há um aumento dos sintomas quando a quantidade excede 12g (3). Existe uma atividade residual da lactase que permite que pequenas doses sejam consumidas (1).

A lactose ingerida em uma refeição contendo grandes quantidades de sólidos ou gordura é mais bem tolerada do que uma quantidade similar de lactose no leite puro, por exemplo (3). Um estudo comprovou que o limiar para sintomas induzidos pelo consumo de lactose foi duplicado (de 12g para 24g) quando a lactose foi administrada concomitantemente a uma refeição, efeito atribuído à alteração no tempo de trânsito intestinal proporcionada pela refeição associada (1).

Além disso, a ingestão habitual de lactose pode aumentar a quantidade tolerada por adultos e adolescentes com má-absorção desse dissacarídeo, ao promover adaptação da microbiota colônica, mimetizando um efeito probiótico (1).

Produtos Lácteos e Lactose

  • Queijos mais duros apresentam menos lactose.
  • Produtos fermentados tendem a ser mais bem tolerados, pois apresentam atividade inerente à lactase que sobrevive ao processo digestivo, auxiliando o metabolismo da lactose no intestino delgado (3).

Conteúdo de lactose em algumas fontes:

  • Leite materno: 7,2g/100mL
  • Leite de vaca: 4,7g/100mL
  • Iogurte: 9g/200mL
  • Queijo cheddar: 0,02g/30g
  • Manteiga: 0,03g

Microbiota Intestinal e Adaptação

A adaptação da microbiota fundamenta-se na capacidade das bactérias colônicas de se adaptarem à exposição frequente de lactose, aumentando a atividade da β-galactosidase fecal e reduzindo a produção de hidrogênio (1). Acredita-se que essa adaptação resulte da proliferação de organismos fermentadores de lactose não produtores de hidrogênio, como as bifidobactérias, e poderia ser perdida caso a ingestão de lactose fosse interrompida ou após o uso de antibióticos (1). Resultados de ensaios clínicos randomizados ainda são insuficientes para comprovar o benefício da suplementação com probióticos na melhora dos sintomas de intolerância à lactose (1).


Referências Bibliográficas

  1. COMINETTI, C.; COZZOLINO, S. M. F. Bases bioquímicas e fisiológicas da nutrição nas diferentes fases da vida, na saúde e na doença. 2. ed. Barueri: Manole, 2020. 1369 p.
  2. RODWELL, V. W. et al. Bioquímica Ilustrada de Harper. 30. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2017. 817 p.
  3. ROSS, A. C.; CABALLERO, B.; COUSINS, R. J.; TUCKER, K. L.; ZIEGLER, T. R. Nutrição Moderna de Shills na Saúde e na Doença. 11. ed. São Paulo: Manole, 2016. 1642 p.
  4. SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de alimentação, nutrição & dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.

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