O Leite e Seus Derivados: Composição, Processamento e Implicações para a Saúde


O Leite e Seus Derivados: Composição, Processamento e Implicações para a Saúde


Introdução

O leite é um alimento complexo e nutricionalmente denso, amplamente consumido em diversas culturas. Sua composição abrange macronutrientes como gorduras, proteínas e carboidratos, além de uma vasta gama de micronutrientes essenciais. Este documento aborda a composição do leite, seus métodos de processamento, as recomendações de consumo e o impacto na saúde, incluindo considerações sobre alergias e intolerâncias.


Composição do Leite

O leite é composto por aproximadamente 87% de água, 3-4% de gorduras, 3,5% de proteínas, 5% de lactose e 1,5% de minerais (3). Legalmente, o leite é classificado em:

  • Integral: com >3,5% de gordura (3).
  • Semidesnatado: com 1,5-1,8% de gordura (3).
  • Desnatado: com <0,5% de gordura (3).

Gorduras

Cerca de 60% dos ácidos graxos presentes no leite são saturados (3). As gorduras do leite, predominantemente triacilglicerois (98%), estão na forma de glóbulos, envoltos por uma membrana (MFGM – Milk Fat Globule Membrane) (3). A presença desses glóbulos está associada a uma resposta mais favorável do colesterol e do LDL ao consumo de leite, em comparação com manteiga ou outros produtos lácteos sem MFGM (3).

Proteínas

O leite de vaca contém quantidades substanciais de leucina, isoleucina e valina (aminoácidos de cadeia ramificada), que são cruciais para a qualidade proteica (1, 3). A proteína do leite é de alto valor biológico devido à presença de todos os aminoácidos essenciais, sua digestibilidade e biodisponibilidade (3). Cerca de 80% da fração proteica do leite é caseína, da qual 35% é beta-caseína. Esta última existe em duas formas, A1 e A2, com possíveis efeitos fisiológicos distintos (3). O whey protein (proteína do soro do leite) representa os 20% restantes da porção proteica do leite (3).

Carboidratos

O principal carboidrato do leite é a lactose (3). Trata-se de um dissacarídeo que necessita ser hidrolisado em glicose e galactose pela enzima intestinal lactase (ou beta-galactosidase) para ser absorvido (3). Aproximadamente 750 mL de leite contêm cerca de 35g de lactose (2).

Micronutrientes

O leite é uma fonte de diversos micronutrientes, como cálcio, fósforo, potássio, magnésio, zinco, selênio, vitaminas do complexo B (B2, B12), além de vitaminas A e E (as últimas dependem da quantidade de gordura presente no leite) (3).

Cálcio

Meta-análises indicam que o consumo de leite, com ou sem suplementação de vitamina D, pode aumentar as concentrações de cálcio no sangue e na espinha lombar de crianças com baixo consumo de leite (3). A maioria dos estudos corrobora o papel do leite e do cálcio na manutenção da saúde óssea e na redução do risco de fraturas (3). Não há evidências de acidificação do plasma após o consumo de leite ou de liberação de cálcio da matriz óssea para contrabalancear a “acidificação” plasmática (3).


Processamento do Leite

Pasteurização

A pasteurização é um tratamento térmico suave, onde o leite cru é aquecido a 72°C por 15 segundos. Este processo destrói patógenos não formadores de esporos e reduz a flora microbiana do leite, resultando em um produto que pode ser armazenado entre 4-6°C por alguns dias (1, 3).

Esterilização UHT (Ultra High Temperature)

A esterilização UHT envolve o aquecimento do leite cru a temperaturas de 135°C a 150°C por 4-8 segundos. Posteriormente, o leite é embalado em condições assépticas, garantindo a destruição completa das bactérias e a inativação de enzimas sensíveis ao calor (3). Graças a esse processo, o leite pode ser armazenado em temperatura ambiente por até 3 meses (3).

É importante notar que, tanto na pasteurização quanto no processo UHT, as características nutricionais do leite são mantidas quase que completamente (3).

Fermentação

A fermentação, utilizada na produção de iogurtes, queijos, kefir, entre outros, desnatura peptídeos hormonais, altera proteínas de antígenos, reduz a quantidade de lactose e afeta a composição bacteriana (1).

Leite Sem Lactose

O leite sem lactose (<0,01% de lactose) ou baixo em lactose (<0,1% de lactose) é obtido pela adição de beta-galactosidase ao leite antes do aquecimento, o que causa a quebra da lactose e a liberação de glicose e galactose (3).


Recomendações de Consumo e Impacto na Saúde

A ingestão ideal de produtos lácteos depende da qualidade da dieta geral do indivíduo (1). Uma recomendação de 2 porções por dia (2 x 237 mL/dia) para adultos é aceitável, sem necessidade de ênfase no consumo de produtos desnatados (1). Diretrizes internacionais recomendam o consumo diário de leite e produtos lácteos (3):

  • Finlândia e Dinamarca: 500 mL de leite/dia (3).
  • Itália, Reino Unido, Espanha e Países Baixos: 2 a 3 porções de leite/dia (3).
  • Estados Unidos, Canadá e Austrália: 2 a 3 porções/dia (3).O tamanho das porções varia entre 125 mL e 250 mL (3). Todas as diretrizes recomendam a inclusão de lácteos a partir do segundo ano de vida, principalmente pela sua composição de proteínas de alto valor biológico e alta digestibilidade, e pela concentração de cálcio, nutrientes essenciais para o crescimento (3).

Saúde Geral

A troca do leite de vaca por substitutos com o objetivo de “ganhar saúde”, mesmo na ausência de doenças ou diagnósticos específicos, não é suportada pelas evidências científicas e não demonstra benefícios para a população em geral (3).

Alergia à Proteína do Leite de Vaca (APLV)

A APLV é uma reação do sistema imunológico às proteínas do leite, principalmente caseína, beta-lactoglobulina e alfa-lactoalbumina (5). Afeta cerca de 4% das crianças no primeiro ano de vida, com prevalência decrescente ao longo dos anos (3). O leite de vaca, nessas pessoas, pode precipitar exacerbações asmáticas e condições relacionadas (1).

Aproximadamente metade a dois terços dos casos de APLV são mediados por IgE, com sintomas que variam de reações cutâneas de intensidade variável a quadros fatais de choque anafilático (3). Os casos não mediados por IgE geralmente se limitam a desordens gastrointestinais (3).

Terapia Nutricional para APLV

É fundamental excluir lácteos da dieta. Leites e derivados de outros mamíferos, como cabra, ovelha e búfala, também não podem ser consumidos, pois suas proteínas são muito semelhantes às do leite de vaca, e a chance de reatividade cruzada é alta (92%) (4).

Intolerância à Lactose

A intolerância à lactose é causada pela ausência ou redução da atividade da lactase (beta-galactosidase), enzima necessária para a hidrólise da lactose e subsequente absorção de monossacarídeos no intestino delgado (3, 5). A deficiência de lactase afeta cerca de 65% da população adulta mundial, geralmente surgindo durante a adolescência e a vida adulta (2, 3). Se não digerida, a lactose permanece no intestino grosso, onde atrai água por osmose e é metabolizada pela microbiota intestinal, produzindo água e gás (CO2 e H2), resultando em dor abdominal, cólica, gases e diarreia (3).

Contudo, nem todos os indivíduos com deficiência de lactase desenvolverão sintomas gastrointestinais (3). Alguns estudos mostram que grande parte de adultos e crianças, mesmo com diagnóstico de intolerância, conseguem ingerir até 12g de lactose (equivalente a 1 copo de leite) sem efeitos adversos (3). Essa tolerância varia com a dose e pode ser aumentada se a lactose for consumida junto a outros alimentos (3). O consumo frequente de lactose também tende a aumentar a tolerância (3). Alguns estudos sugerem que nem toda intolerância ao leite se deve apenas à lactose (2). A habituação à lactose, combinada com prebióticos e um trânsito intestinal mais lento, pode modificar os sintomas relacionados à má absorção (2).

Ação na Hipertrofia/Crescimento

Devido às suas quantidades significativas de proteínas de alto valor biológico, o leite pode aumentar a concentração plasmática de IGF-1 (fator de crescimento semelhante à insulina tipo 1), responsável por mediar a ação do hormônio do crescimento (1, 3). A leucina, em particular, ativa a via do mTOR (mammalian target of rapamycin), promovendo a replicação celular e inibindo a apoptose (1).

Saúde Óssea

Países com maior consumo de leite apresentaram as maiores taxas de fraturas no quadril; entretanto, essa não foi uma relação causal direta, pois diversos fatores influenciam a saúde óssea (vitamina D, etnia, entre outros) (1). Alguns estudos não encontraram benefício no consumo de grandes quantidades de lácteos na prevenção de fraturas ósseas (1).

Mortalidade

Quando comparadas às principais fontes de proteína da dieta, o leite apresentou uma associação com todas as causas de mortalidade menor que carnes não processadas, ovos e carnes processadas (1).

Motilidade Gástrica e Beta-Caseína

Dietas contendo beta-caseína A1 demonstraram capacidade de diminuir a motilidade intestinal, aumentando o tempo de trânsito gastrointestinal em roedores (2). A beta-caseína A1 também foi capaz de aumentar marcadores inflamatórios e a infiltração de leucócitos, sugerindo mecanismos inflamatórios (2). Leites contendo apenas beta-caseína A2 mostraram-se melhores em relação aos sintomas em pacientes com má absorção (2). Indivíduos intolerantes à lactose apresentaram menores sintomas (náuseas e diarreia) com o consumo de leite contendo apenas beta-caseína A2 (2). Parece que a beta-caseína A1 amplifica os sintomas de intolerantes à lactose (2). Não foram encontradas evidências de que o leite contendo apenas beta-caseína A2 diminua a motilidade e aumente o tempo de esvaziamento gástrico.

Inflamação

O leite é um composto natural e culturalmente aceito como vetor para a entrega de suplementos, incluindo prebióticos e probióticos, capazes de modular a flora intestinal e influenciar diretamente processos imunes e inflamatórios (4). O estudo ATTICA reportou uma relação inversa entre o consumo de produtos lácteos e marcadores da síndrome metabólica, incluindo marcadores inflamatórios (4). Uma revisão com 52 estudos em humanos demonstrou que o consumo de lácteos está associado a propriedades anti-inflamatórias em humanos (4). No entanto, em pessoas com alergia à proteína do leite, observou-se uma atividade pró-inflamatória, o que é esperado, pois sensibilidades alimentares estão ligadas a um estado inflamatório (4). Outro estudo avaliou o consumo de lácteos por indivíduos obesos e sua relação com o processo inflamatório, não encontrando qualquer efeito adverso nesses indivíduos (4). Inclusive, outros estudos mostram que pessoas com inflamação crônica de baixo grau são mais suscetíveis à ação anti-inflamatória dos lácteos do que pessoas saudáveis (4). Apesar da gordura saturada ser um fator inflamatório, uma revisão mostrou que mesmo os leites integrais, “ricos em gordura saturada”, ainda apresentam atividade anti-inflamatória (4).

Diabetes

Em alguns estudos, a ingestão de produtos lácteos foi associada a uma modesta diminuição no risco para diabetes (1).

Autismo

Não existem associações de causalidade entre o consumo de leite de vaca e o autismo (3).


Referências Bibliográficas

  1. WILLETT, W. C.; LUDWIG, D. S. Milk and health. N Engl J Med, [s.l.], v. 382, n. 7, p. 644–654, 2020.
  2. MILAN, A. M. et al. Comparison of the impact of bovine milk β-casein variants on digestive comfort in females self-reporting dairy intolerance: A randomized controlled trial. Am J Clin Nutr, [s.l.], v. 111, n. 1, p. 149–160, 2020.
  3. MARANGONI, F. et al. Cow’s Milk Consumption and Health: A Health Professional’s Guide. J Am Coll Nutr, [s.l.], v. 38, n. 3, p. 197–208, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1080/07315724.2018.1491016.
  4. BORDONI, A. et al. Dairy products and inflammation: A review of the clinical evidence. Crit Rev Food Sci Nutr, [s.l.], v. 57, n. 12, p. 2497–2525, 2017. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/10408398.2014.967385.
  5. SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de alimentação, nutrição & dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.

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