Litíase Renal: Fisiopatologia, Fatores de Risco e Estratégias Nutricionais e Terapêuticas


Litíase Renal: Fisiopatologia, Fatores de Risco e Estratégias Nutricionais e Terapêuticas


Introdução

A litíase renal, ou nefrolitíase, é uma condição urológica comum e crônica, caracterizada pela formação de cálculos no trato urinário, com altas taxas de recorrência. Este documento visa detalhar a fisiopatologia subjacente à formação desses cálculos, os principais fatores de risco envolvidos e as estratégias de conduta clínica, com ênfase nas abordagens nutricionais e terapêuticas baseadas em evidências.


Fisiopatologia da Litíase Renal

A litíase renal é uma doença complexa que afeta aproximadamente 3% da população, sendo mais prevalente em homens (3). É um distúrbio multifacetado que envolve processos de saturação, supersaturação, nucleação, crescimento ou agregação de cristais, retenção de cristais e, por fim, a formação de cálculos na presença de promotores, inibidores e complexos na urina (1,2).

O tipo mais comum de cálculo renal (60% dos casos) é composto por oxalato de cálcio (1,2). Outros tipos incluem os cálculos à base de ácido úrico ou cistina, embora sejam minoritários.

Fatores Contribuintes para a Supersaturação

Diversos fatores contribuem para a supersaturação urinária e a consequente formação de cálculos, incluindo:

  • Distúrbios metabólicos: hipercalciúria, hiperoxalúria, hiperuricosúria e cistinúria (2,3).
  • Alterações do pH urinário: um pH inferior a 5,5 reduz a solubilidade de cristais, como o do ácido úrico, favorecendo a formação de cálculos (3).
  • Deficiência dos inibidores da cristalização: citrato, glicosaminoglicanos, nefrocalcina e magnésio (2,3). O citrato de cálcio, por exemplo, é capaz de se ligar a íons de cálcio, formando complexos solúveis, e sua deficiência é um problema significativo (3).
  • Redução do volume urinário (2,3).

Tipos Específicos de Cálculos e suas Peculiaridades

Cálculos de Oxalato de Cálcio

A hiperoxalúria, definida como a excreção urinária de oxalato superior a 40 mg, desempenha um papel crucial na formação de cálculos de cálcio, sendo observada em 10-50% dos indivíduos com cálculos recorrentes (1).

Pacientes com doenças inflamatórias intestinais ou bypass gástrico frequentemente desenvolvem hiperoxalúria devido à má absorção de gordura. Nesse cenário, os ácidos biliares, que normalmente seriam reabsorvidos no trato gastrointestinal (TGI) proximal, não são absorvidos, e os sais biliares e ácidos graxos aumentam a permeabilidade colônica ao oxalato. Além disso, os ácidos graxos não absorvidos ligam-se ao cálcio, formando “sabões” insolúveis e reduzindo a disponibilidade de cálcio em uma forma solúvel para ligar o oxalato no intestino. Consequentemente, os níveis séricos e urinários de oxalato aumentam (1).

O oxalato urinário também tem origem na síntese endógena, que é proporcional à massa corporal magra (1). A vitamina C (ácido ascórbico) pode contribuir para a produção de oxalato urinário, sendo responsável por 35-55% dessa produção (1,3).

Evidências sugerem que a ausência de certas bactérias intestinais degradadoras de oxalato pode ser um fator para o aumento da má absorção. A bactéria gram-negativa e anaeróbia obrigatória Oxalobacter formigenes, cujo metabolismo depende de oxalato, está ausente na microbiota intestinal de pacientes afetados por oxalúria (4,6). Outras cepas capazes de catabolizar o oxalato incluem Lactobacillus sp. (e.g., L. paracaseii, L. gasseri, L. acidophilus), Bifidobacterium sp. e Bacillus sp. (5,7,8,9).

Cálculos de Cistina

Os cálculos de cistina correspondem a cerca de 1-2% de todos os cálculos. A cistinúria é uma doença autossômica recessiva caracterizada por um erro metabólico no transporte de aminoácidos dibásicos, como a cistina, resultando em sua excreção excessiva no fígado e nos rins. Dada a baixa solubilidade da cistina na urina, ocorre a formação de litíase.

Influência da Microbiota

Estudos recentes indicam que a disbiose (desequilíbrio da microbiota) pode agravar a litíase renal (10). A disbiose pode gerar inflamação de baixo grau, que aumenta o estresse oxidativo, causando lesões nos túbulos renais e elevando as chances de infecções, o que piora o quadro de pacientes com litíase (10).


Fatores de Risco e Sua Interrelação

Fatores Demográficos e Ambientais

  • Homens (1).
  • Faixa etária entre 30–40 anos (2).
  • Baixo volume urinário (1).
  • Obesidade (1).
  • Morar em regiões de clima quente (1).

Obesidade e Litogênese

Conforme o peso corporal aumenta, a excreção de cálcio, oxalato e ácido úrico também se eleva (1). Pacientes com maior Índice de Massa Corporal (IMC) apresentam redução da excreção de amônia e tamponamento prejudicado dos íons de hidrogênio (1). O controle de peso é considerado uma das modalidades preventivas, sendo recomendado um IMC de 18-25 para indivíduos com formação de cálculos (1).

Alterações Bioquímicas

É fundamental monitorar o ácido úrico sérico, que pode ser um fator de risco para litíase renal.


Conduta Clínica e Terapia Nutricional

A conduta clínica para litíase renal deve ser abrangente, visando a prevenção da formação de novos cálculos e o manejo dos existentes.

Estratégias Nutricionais e de Hidratação

Ingestão Hídrica e Volume Urinário

A meta principal é alcançar um alto volume de fluxo urinário, em vez de uma ingestão específica de líquido. Uma taxa de fluxo urinário elevada tende a “lavar” os cristais formados, e um volume urinário de 2 a 2,5 L/dia deve ser suficiente para evitar a recorrência de cálculos (1). A hidratação durante as horas de sono é crucial para romper o ciclo de urina mais concentrada pela manhã (1). Recomenda-se uma ingestão de líquidos de pelo menos 30 mL/Kg/dia (2).

Bebidas como o vinho (álcool) e o café (cafeína) podem conferir certa proteção devido ao seu papel na inibição do hormônio antidiurético, elevando a diurese (2).

Cálcio

Não há evidências que demonstrem que a restrição de cálcio reduza a recorrência de cálculos; pelo contrário, essa restrição pode aumentar a formação de cálculos (2). A ingestão de cálcio exerce um efeito tão importante quanto a ingestão de oxalato sobre a oxalúria (2). Em condições normais, o cálcio absorvido liga-se ao oxalato no intestino, formando um complexo insolúvel (2). Em situações de restrição de cálcio, a redução do cálcio no lúmen intestinal eleva a concentração de oxalato livre disponível para absorção e posterior excreção (2).

A recomendação de ingestão de cálcio é a mesma para pacientes saudáveis (2). O leite, em particular, parece reduzir a absorção de oxalato ao ligar-se a ele no lúmen intestinal, tornando-o menos absorvível (1).

Oxalato

O oxalato de cálcio é o principal componente da maioria dos cálculos renais. A relação entre cálcio e oxalato na urina é de 5:1, o que significa que pequenas alterações na concentração de oxalato têm um efeito maior sobre a cristalização do oxalato de cálcio do que grandes alterações na concentração de cálcio (2).

No entanto, não existem estudos que demonstrem que a restrição de oxalato reduza efetivamente a recorrência de cálculos (2). Recomenda-se apenas evitar alimentos extremamente ricos em oxalato ou que contenham oxalato com elevada biodisponibilidade (2). Alimentos como ora-pro-nóbis e beterraba são ricos em oxalato.

A orientação dietética para reduzir o oxalato na urina deve incluir o uso de probióticos, a redução da ingestão de oxalatos na dieta, e o consumo simultâneo de alimentos ricos em cálcio para reduzir a absorção do oxalato (1).

Sódio

O elevado consumo de sódio contribui para a litogênese devido ao seu potencial de elevar o cálcio urinário, decorrente do transporte comum de ambos no túbulo proximal (2). Recomenda-se evitar a ingestão excessiva de sal.

Potássio

Foi encontrada uma associação entre uma ingestão reduzida de potássio e um maior risco de formação de cálculos renais (2). A ingestão de alimentos ricos em potássio, como leguminosas, frutas e vegetais, parece exercer efeito protetor na formação de cálculos (2). É fundamental estimular a ingestão de potássio.

Proteínas

A ingestão elevada de proteínas animais contribui para a hiperuricosúria (sobrecarga de purinas), hiperoxalúria (aumento de oxalato) e hipocitraturia (maior reabsorção tubular de citrato) (2). Um estudo demonstrou que a restrição aguda e moderada na ingestão de proteínas reduzia a excreção de oxalato, fosfato, hidroxiprolina, cálcio e ácido úrico, e levou à excreção urinária de citrato (2).

Desse modo, a recomendação de ingestão de proteínas para pacientes com litíase é de 0,8 a 1,2 g/kg/dia (2), sendo interessante focar em proteínas de fontes vegetais (11).

Purinas

Embora não haja uma recomendação específica na literatura para a adequação na ingestão de purinas, ingestões superiores a 175 mg/dia podem elevar a excreção urinária de ácido úrico (2).

Vitamina C (Ácido Ascórbico)

A vitamina C é considerada um fator de risco para a formação de cálculos, uma vez que sua metabolização no fígado resulta em ácido oxálico (2). Por esse motivo, o consumo de doses elevadas, comumente utilizadas em suplementos de 1 g/dia ou mais, não é recomendado (2).

Fitatos

No rim, o fitato tem ação inibitória na cristalização, diminuindo a formação de cálculos, provavelmente por seu poder quelante de íons de cálcio, o que reduz a associação entre cálcio e oxalato (2).

Acidificação da Urina

Refrigerantes e bebidas à base de cola, que contêm ácido fosfórico, devem ser evitados devido à acidificação da urina (1). Dietas ricas em vegetais têm o poder de aumentar o pH urinário (11).

Chás

O chá-preto e o mate devem ser utilizados com moderação, em razão de seu elevado teor de oxalato (2). Chá, café, cerveja e vinho são associados a um risco reduzido de formação dos cálculos.

Estratégias Diuréticas e Outras Recomendações

Podem ser utilizadas estratégias diuréticas. O cominho pode ser incluído como especiaria.

Probióticos

Pacientes com formação de cálculo que não possuem a bactéria Oxalobacter formigenes apresentam excreção mais elevada de oxalato na urina e mais episódios de cálculos em comparação com pacientes colonizados (1). A administração de cápsulas de Oxalobacter formigenes com cobertura entérica reduz significativamente o oxalato na urina de pacientes com hiperoxalúria (1).

Outras cepas probióticas que podem ser úteis incluem:

  • Lactobacillus Lactis (Controverso) (2).
  • Lactobacillus Gasseri (Controverso) (2).
  • Lactobacillus Paracaseii.
  • Lactobacillus Acidophilus.
  • Bifidobacterium sp. (8).
  • Bacillus sp.

Plantas Medicinais

Diversas plantas medicinais têm sido estudadas por seu potencial na prevenção e tratamento da litíase renal:

  • Quebra Pedra (Phyllanthus niruri): Um estudo em animais demonstrou que o uso de quebra-pedra resultou em cálculos renais significativamente menores, facilitando sua excreção (12). Quanto maior o tempo de uso, menor o peso dos cálculos, com segurança de uso por até 60 dias (12). Em humanos, um estudo com cápsulas de extrato seco das folhas de P. niruri (225 mg) combinado com estearato de magnésio (152 mg) e piridoxina (2 mg), administrado duas vezes ao dia por 90 dias, mostrou que 25% dos pacientes ficaram livres de cálculos renais, e os demais tiveram redução expressiva no tamanho dos cálculos remanescentes (13). Sugere-se que atua pela diminuição da excreção de glicosaminoglicanas na urina, que são inibidores da cristalização, e pela alta incorporação destas nos cálculos, tornando-os mais frágeis.
  • Cominho (Nigella sativa): Um estudo testou 500 mg de Nigella sativa duas vezes ao dia por 10 semanas, resultando em 44% dos pacientes excretando os cálculos completamente e 51% apresentando diminuição do tamanho dos cálculos (14).
  • Outras plantas incluem: Copaíba (Copaifera langsdorffii), Cana de macaco (Costus spiralis), Dente de leão (Taraxacum officinalis), Salsinha, Romã, Framboesa, Chá-verde, Urtiga, Orégano e Hibisco (15).

Referências Bibliográficas

  1. MAHAN, L. K.; ESCOTT-STUMP, S.; RAYMOND, J. L. Krause Alimentos, Nutrição e Dietoterapia. 13. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. 1227 p.
  2. SILVA, S. M. C. S.; MURA, J. D. P. Tratado de alimentação, nutrição & dietoterapia. 3. ed. São Paulo: Editora Pitaya, 2016. 1308 p.
  3. GOMES, P. N. et al. Profilaxia da litíase renal. [s.l.], v. 5, p. 49–56, 2005.
  4. SIENER, R. et al. The role of Oxalobacter formigenes colonization in calcium oxalate stone disease. Kidney International, v. 83, n. 6, p. 1144–1149, jun. 2013.
  5. ALLISON, M.; COOK, H. Oxalate degradation by microbes of the large bowel of herbivores: the effect of dietary oxalate. Science, v. 212, n. 4495, p. 675–676, 8 maio 1981.
  6. ALLISON, M. J. et al. Oxalobacter formigenes gen. nov., sp. nov.: oxalate-degrading anaerobes that inhabit the gastrointestinal tract. Archives of Microbiology, v. 141, n. 1, p. 1–7, fev. 1985.
  7. HATCH, M. Gut microbiota and oxalate homeostasis. Annals of Translational Medicine, v. 5, p. 36–36, jan. 2017.
  8. KLIMESOVA, K.; WHITTAMORE, J. M.; HATCH, M. Bifidobacterium animalis subsp. lactis decreases urinary oxalate excretion in a mouse model of primary hyperoxaluria. Urolithiasis, v. 43, n. 2, p. 107–117, 1 abr. 2015.
  9. TURRONI, S. et al. Oxalate consumption by lactobacilli: evaluation of oxalyl-CoA decarboxylase and formyl-CoA transferase activity in Lactobacillus acidophilus. Journal of Applied Microbiology, v. 103, n. 5, p. 1600–1609, nov. 2007.
  10. CUÑÉ CASTELLANA, J. [Microbioma and lithiasis.]. Archivos Españoles de Urología, v. 74, n. 1, p. 157–170, jan. 2021.
  11. NIRUMAND, M. et al. Dietary Plants for the Prevention and Management of Kidney Stones: Preclinical and Clinical Evidence and Molecular Mechanisms. International Journal of Molecular Sciences, v. 19, n. 3, p. 765, 7 mar. 2018.
  12. BARROS, M. E. et al. Effect of extract of Phyllanthus niruri on crystal deposition in experimental urolithiasis. Urological Research, v. 34, n. 6, p. 351–357, 24 nov. 2006.
  13. CEALAN, A. et al. Evaluation of the efficacy of Phyllanthus niruri standardized extract combined with magnesium and vitamin B6 for the treatment of patients with uncomplicated nephrolithiasis. Medical and Pharmaceutical Reports, 23 abr. 2019.
  14. ARDAKANI MOVAGHATI, M. R. et al. Efficacy of black seed (Nigella sativa L.) on kidney stone dissolution: A randomized, double‐blind, placebo‐controlled, clinical trial. Phytotherapy Research, v. 33, n. 5, p. 1404–1412, 14 maio 2019.
  15. NIRUMAND, M. et al. Dietary Plants for the Prevention and Management of Kidney Stones: Preclinical and Clinical Evidence and Molecular Mechanisms. International Journal of Molecular Sciences, v. 19, n. 3, p. 765, 7 mar. 2018.

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