Segunda Infância (3-6 anos) – Desenvolvimento Físico e Cognitivo: Pensamento e Funções Simbólicas
Introdução
O período pré-escolar abrange uma fase crítica no desenvolvimento neuropsicocognitivo, caracterizada pela emergência e consolidação da função simbólica e pela estruturação de padrões de raciocínio. Este estágio estabelece o substrato para a cognição complexa, com profunda implicação na aquisição de linguagem, na formação da “Teoria da Mente” e na arquitetura da memória.
O Pensamento no Estágio Pré-Operatório
O segundo estágio de desenvolvimento cognitivo, denominado pré-operatório, estende-se aproximadamente dos 2 aos 7 anos, sendo fundamentalmente marcado pela expansão do pensamento simbólico. (1)
A Função Simbólica e o Desenvolvimento Inicial
Observa-se, durante a idade pré-escolar, uma significativa ampliação da curiosidade intelectual. Neste período, manifesta-se a função simbólica, primordialmente através da linguagem, conferindo à criança a capacidade de representar mentalmente pessoas e objetos não presentes, bem como de conceber cenários que transcendem sua realidade imediata. (1)
A intervenção parental é crucial neste processo. Respostas e atenção adequadas à curiosidade intelectual da criança facilitam a modificação de atitudes e expectativas, resultando no refinamento e na correção de conceitos. (1)
A função simbólica consiste na capacidade de evocar um objeto ou ideia na ausência de estímulos sensoriais ou motores. Esta é uma aquisição cognitiva essencial, visto que a representação simbólica é a base para a comunicação verbal, o raciocínio matemático e a memória representacional. (1)
A função simbólica é observável em diversas manifestações comportamentais:
- Imitação Diferida: A imitação de uma ação observada após um intervalo de tempo, que se torna mais robusta após os 18 meses, exigindo a retenção de uma representação mental da ação. (1)
- Brincadeira de Faz de Conta: Onde um objeto é utilizado como símbolo de outro (e.g., um controle remoto simbolizando um telefone). (1)
- Linguagem: O sistema linguístico é o maior e mais complexo uso da função simbólica. (1)
Características do Pensamento Pré-Operatório (2 a 6 anos)
O raciocínio de crianças entre 2 e 6 anos é influenciado por três características centrais, que moldam sua interação e compreensão do ambiente: (1)
- Egocentrismo: Particularmente dos 2 aos 4 anos, o raciocínio é fortemente influenciado pelas necessidades e perspectivas da própria criança. O pensamento e a percepção do mundo refletem exclusivamente seu ponto de vista. Isso leva a julgamentos absolutos e a uma insensibilidade a argumentos contrários às suas afirmações. O egocentrismo é uma forma de centração em si mesmo, dificultando a distinção entre a realidade externa e seus processos mentais. (1)
- Animismo: A criança projeta suas experiências pessoais em objetos inanimados ou animais, atribuindo-lhes características humanas, como alma ou vida. A tendência de atribuir animismo é geralmente direcionada a itens que exibem movimento, produção de sons ou outras características vitais. (1)
- Irreversibilidade: Nesta fase, o pensamento baseia-se na percepção do imediatismo, o que impede a construção de um pensamento sintético da realidade. Essa característica, consequência direta do egocentrismo, limita a percepção das relações causais entre eventos. O pensamento regulado pela percepção imediata é inerentemente irreversível, inviabilizando o retorno mental ao ponto de partida de uma sequência lógica. Contudo, a reversibilidade cognitiva começa a emergir gradualmente, próxima aos 6 anos de idade. (1)
Avanços Cognitivos e Limitações
A expansão do pensamento simbólico é acompanhada por progressos na compreensão de conceitos espaciais, causais, de identidade, categorização e numéricos. (1)
Entendimento de Objetos, Causalidade e Identidade
- Espaço: A capacidade de utilizar representações simbólicas de espaços físicos (e.g., modelos em escala) para localizar objetos no ambiente real emerge gradualmente, consolidando-se próximo aos 5 anos. (1)
- Causalidade: O raciocínio inicial opera por transdução, onde a criança vincula mentalmente eventos que são temporalmente próximos, sem um nexo causal lógico. No entanto, em contextos apropriados ao seu nível de desenvolvimento, crianças pequenas demonstram compreensão de relações de causa e efeito. (1)
- Identidade: O desenvolvimento do conceito de identidades confere previsibilidade ao ambiente. Este conceito estabelece que a essência de pessoas e objetos é mantida, apesar de alterações superficiais em sua forma, tamanho ou aparência. Essa compreensão é fundamental para o conceito emergente de self. (1)
- Categorização: A categorização, ou classificação, exige a discriminação de semelhanças e diferenças, incluindo a capacidade de distinguir entre seres vivos e objetos inanimados. (1)
Desenvolvimento do Conceito de Número
O conceito rudimentar de número está presente em bebês, com a capacidade de distinguir quantidades. A ordinalidade (comparação de quantidades, como maior/menor) inicia-se entre 9 e 11 meses. (1)
O princípio da cardinalidade — o entendimento de que a contagem final representa o número total de itens do conjunto — só é aplicado consistentemente por volta dos 3 anos e meio ou mais tarde. Por volta dos 5 anos, as crianças demonstram maior domínio da contagem e do tamanho relativo dos números (1 a 10). O senso numérico básico, que inclui contagem, ordinalidade, operações simples e estimativa, consolida-se na entrada para o ensino fundamental. A competência numérica pré-escolar é um preditor robusto do desempenho acadêmico em matemática. (1)
Centração e Conservação
A centração é a tendência a focar em um aspecto de uma situação, negligenciando os outros. Segundo a teoria piagetiana, esta é a razão pela qual a criança em idade pré-escolar chega a conclusões ilógicas: a inabilidade de descentrar (considerar múltiplos aspectos simultaneamente). (1)
O fracasso em compreender a conservação é um exemplo clássico de centração. A conservação é o princípio de que duas quantidades permanecem iguais apesar da alteração em sua aparência, desde que nada seja adicionado ou retirado. A incapacidade de descentrar impede a consideração simultânea de múltiplos atributos (e.g., altura e largura). Adicionalmente, a limitação pela irreversibilidade impede o raciocínio mental que inverte a ação para restaurar o estado original. O pensamento neste estágio concentra-se em estados sucessivos, negligenciando as transformações de um estado para outro. (1)
Teoria da Mente e Entendimento da Realidade
A Teoria da Mente é a consciência da diversidade de estados mentais (crenças, desejos, intenções) e o entendimento de que outras pessoas possuem suas próprias perspectivas e intenções. Esta habilidade é fundamental para a compreensão e predição do comportamento social. (1)
Conhecimento de Estados Mentais
Entre 2 e 5 anos, o conhecimento da criança sobre processos mentais e sua capacidade de diferenciar entre estados mentais e a realidade crescem drasticamente. Aos 4-5 anos, ela já compreende que uma pessoa pode ter uma crença que ela própria sabe ser falsa. (1)
Entre 3 e 5 anos, as crianças internalizam que o pensamento ocorre na mente, pode envolver o real e o imaginário, e é distinto de atividades sensório-motoras e do saber. Elas começam a prever que as ações são guiadas por crenças, utilizando termos como “querer” ou “achar”. Observam que expressões não necessariamente refletem estados internos e percebem a possibilidade de manipular estados mentais alheios. (1)
O reconhecimento de estados mentais nos outros está associado ao declínio do egocentrismo e ao desenvolvimento da empatia. (1)
Falsas Crenças e Dissimulação
O entendimento de falsas crenças deriva da percepção de que as pessoas mantêm representações mentais da realidade. O domínio consistente das tarefas de falsa crença ocorre por volta dos 4 anos. A compreensão das falsas crenças de segunda ordem (crenças incorretas sobre as crenças de outra pessoa) emerge por volta dos 5 ou 6 anos. (1)
A dissimulação é a tentativa de induzir uma falsa crença em outra pessoa. O desempenho em tarefas de falsa crença é preditivo da capacidade de mentir. A capacidade de contar mentiras simples inicia-se por volta dos 3 anos. (1)
A capacidade de refletir sobre o conhecimento próprio e alheio, que leva a um sucesso maior em esconder transgressões sociais, é mais evidente próximo aos 8 anos. A mentira, neste contexto, pode ser motivada por cortesia ou pelo desejo de não ferir os sentimentos alheios. (1)
Distinção entre Aparência e Realidade
A distinção entre o que “parece ser” e o que “é” emerge entre 3 e 4 anos de idade. Embora as crianças possam ter dificuldade em demonstrar esse conhecimento em tarefas verbais, elas se saem melhor quando solicitadas a demonstrá-lo por meio de ações. (1)
A distinção entre fantasia e realidade é aprendida entre 18 meses e 3 anos. Aos 3 anos, a criança diferencia eventos reais de sonhos e o imaginário do invisível, e compreende que o faz de conta é intencional. O pensamento mágico em crianças mais velhas não se origina da confusão entre realidade e fantasia, mas sim como uma explicação para eventos sem causas óbvias ou como um engajamento no prazer do brincar de faz de conta (e.g., amigos imaginários). (1)
Fatores Individuais na Teoria da Mente
Crianças com maior atenção social na primeira infância demonstram maior facilidade em tarefas de Teoria da Mente aos 4 anos. A competência social é um fator relevante, estando associada à capacidade de reconhecer falsas crenças e adotar a perspectiva alheia. (1)
O ambiente linguístico doméstico pode influenciar. Crianças bilíngues apresentam um desempenho ligeiramente superior, o que pode ser atribuído ao seu conhecimento de múltiplas representações para um objeto ou ideia, facilitando a percepção de diferentes perspectivas. O incentivo a brincadeiras de faz de conta estimula essa capacidade, pois o desempenho de papéis exige a adoção de perspectivas alheias. O desenvolvimento neural no córtex pré-frontal é reconhecido como importante para a Teoria da Mente. Uma Teoria da Mente ineficaz pode indicar prejuízo cognitivo, manifestando-se em dificuldades na reciprocidade e na compreensão das intenções alheias. (1)
Memória e Processamento da Informação
Na segunda infância, há melhoria na atenção, aumento na rapidez do processamento de informações e início da formação de memórias de longo prazo. (1)
Processos e Capacidades Básicas
A memória pode ser modelada como um sistema de arquivamento com três processos: codificação, armazenamento e recuperação. (1)
- Codificação: Atribuição de um “código” ou “rótulo” à informação para facilitar seu acesso. (1)
- Armazenamento: Retenção da informação. (1)
- Recuperação: Acesso à informação armazenada. (1)
Os modelos de processamento descrevem o cérebro com três armazenamentos: memória sensorial, memória de trabalho (curto prazo, onde a informação é ativamente processada) e memória de longo prazo (capacidade virtualmente ilimitada). A central executiva é responsável por organizar a informação codificada para a transferência à memória de longo prazo. (1)
A capacidade da memória de trabalho (e.g., dígitos recordados) aumenta significativamente, sendo que seus componentes básicos estão presentes aos 6 anos, com aumento linear até aproximadamente 14/15 anos. O aprimoramento da memória de trabalho possibilita o desenvolvimento da função executiva, que é o controle consciente dos processos mentais, emoções e ações, essencial para o planejamento e a execução de atividades dirigidas a objetivos. Alterações na função executiva entre 2 e 5 anos permitem a criação de regras complexas para resolução de problemas. A função executiva está positivamente associada ao desempenho acadêmico (letramento e numeramento), em alguns casos, com maior relevância do que o QI. (1)
Reconhecimento, Lembrança e Estratégias
Reconhecimento é a capacidade de identificar algo já encontrado, enquanto lembrança é a capacidade de reproduzir o conhecimento armazenado. Embora ambas melhorem com a idade, o reconhecimento é superior à lembrança em todos os grupos etários. (1)
Crianças pequenas frequentemente não utilizam estratégias de memorização espontaneamente e, por vezes, escolhem estratégias ineficientes. A utilização espontânea de estratégias torna-se mais eficiente em crianças mais velhas, especialmente após o início da educação formal. (1)
Tipos de Memória na Infância
As memórias de experiências na segunda infância são, em grande parte, involuntárias. (1)
- Memória Genérica: Inicia-se por volta dos 2 anos, produzindo um roteiro (script) ou um esboço geral de eventos familiares e repetidos (e.g., rotinas). (1)
- Memória Episódica: Consciência de ter experimentado um evento específico em um tempo e lugar determinados. Devido à limitada capacidade da memória de trabalho, estas memórias são temporárias. (1)
- Memória Autobiográfica: Tipo de memória episódica que forma a história de vida do indivíduo. Surge, geralmente, entre 3 ou 4 anos, e sua emergência pode estar ligada ao desenvolvimento do conceito de self. (1)
A forma como os adultos interagem com a criança, conversando sobre experiências compartilhadas, influencia significativamente a memória autobiográfica. (1)
Inteligência: Medidas e Influências
A inteligência é conceituada como a capacidade de aprender com situações, adaptar-se a novas experiências e manipular conceitos abstratos. (1)
Medidas Psicométricas e Influências
Os testes mais utilizados para a avaliação de crianças em idade pré-escolar são as Escalas de Inteligência Stanford-Binet e a Escala de Inteligência Wechsler Pré-escolar e Primária. (1)
O Quociente de Inteligência (QI) é uma medida de desempenho em tarefas específicas, comparada a pares da mesma idade, e não uma quantidade fixa de inteligência inata. O QI médio global tem demonstrado um aumento contínuo (cerca de 2,3 pontos por década). (1)
A correlação entre nível socioeconômico (NSE) e QI é bem estabelecida. O QI de crianças em lares de alto NSE é mais suscetível a influências genéticas, enquanto o QI em lares de baixo NSE é mais influenciado pela privação ambiental. (1)
Abordagem de Vygotsky: ZDP e Andaime Conceitual
Segundo Vygotsky, a aprendizagem ocorre pela interiorização dos resultados das interações com adultos. A aprendizagem interativa é mais eficaz na progressão através da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que é o espaço entre o que a criança pode fazer sozinha e o que pode realizar com assistência. A ZDP pode ser avaliada por testes dinâmicos, que enfatizam o potencial de desenvolvimento. (1)
A ZDP, em conjunto com o andaime conceitual (scaffolding), auxilia na orientação do progresso cognitivo. O andaime deve ser ajustado, atenuando-se à medida que a criança adquire a habilidade. A brincadeira atua como um andaime, permitindo que a criança opere no limite superior de sua ZDP (e.g., as “regras” do faz de conta fornecem suporte às capacidades reguladoras emergentes). (1)
Desenvolvimento da Linguagem
Vocabulário e Gramática
Aos 3 anos, a criança média utiliza cerca de 900 a 1000 palavras. Aos 6 anos, o vocabulário expressivo típico atinge 2,6 mil palavras, com um vocabulário receptivo (compreendido) superior a 20 mil palavras. A rápida expansão vocabular ocorre por meio de associação rápida (fast mapping), onde o significado aproximado de uma palavra nova é inferido após poucas exposições. (1)
Aos 3 anos, inicia-se o uso de plurais, possessivos e pretérito, com frases curtas e simples. Entre 4 e 5 anos, as frases se tornam mais longas e complexas (declarativas, negativas, interrogativas, imperativas). O contato com pares com forte habilidade linguística demonstra um efeito positivo na linguagem da criança. Dos 5 aos 7 anos, a fala se assemelha à adulta, com o domínio de construções mais longas, compostas e complexas. (1)
Pragmática e Discurso
A pragmática é o conhecimento prático de como utilizar a linguagem para a comunicação social. Ela se relaciona com a Teoria da Mente, pois exige a capacidade de adotar a perspectiva do ouvinte. (1)
Crianças de 3 anos demonstram atenção ao efeito de sua fala. Aos 4 anos, há adaptação da linguagem ao interlocutor (e.g., simplificação ao falar com crianças menores). Aos 5 anos, a criança adapta o conteúdo ao conhecimento prévio do ouvinte. (1)
O discurso particular (falar alto consigo mesmo) é comum na infância. A visão de Vygotsky, de que o discurso particular é uma forma de conversa consigo mesmo e parte do processo de aprendizagem, é mais apoiada por achados subsequentes do que a visão de Piaget, que o considerava um sinal de imaturidade cognitiva. (1)
Atrasos de Linguagem e Alfabetização
Cerca de 11% das crianças de 3 a 6 anos apresentam algum transtorno de comunicação. Problemas de audição, anormalidades craniofaciais, nascimento prematuro e fatores socioeconômicos podem estar associados a atrasos de fala e linguagem. Há maior probabilidade de meninos iniciarem a fala tardiamente. (1)
Para a alfabetização, as crianças precisam dominar habilidades de pré-leitura: [1] habilidades de linguagem oral (vocabulário, sintaxe) e [2] habilidades fonológicas específicas (ligação letra-som). A interação social e o hábito de leitura promovidos pelos pais são preditores significativos de melhor desempenho em leitura e escrita. (1)
Mídia e Cognição
Crianças em idade pré-escolar compreendem a natureza simbólica da televisão e podem imitar comportamentos observados. A exposição a programas com ritmo acelerado pode afetar negativamente a função executiva e a atenção sustentada. Contudo, a programação infantil de alta qualidade pode promover ganhos cognitivos. (1)
Recomenda-se que crianças de 2 a 5 anos não excedam uma hora diária de consumo de mídia em telas, com a participação e discussão dos pais. Para crianças acima de 6 anos, limites consistentes e horários sem mídia são essenciais. (1)
Diretrizes para Uso Responsável da Mídia
- Limitar o tempo de exposição à mídia em tela ao mínimo necessário. (1)
- Estabelecer diretrizes claras para o uso de todas as formas de mídia. (1)
- Proteger contra conteúdo inadequado. (1)
- Exigir permissão para o uso de dispositivos. (1)
- Remover dispositivos (TVs, videogames, computadores) dos quartos. (1)
- Assistir e discutir o conteúdo da mídia com as crianças. (1)
- Utilizar a mídia de forma positiva para estimular a criatividade. (1)
- Limitar a aquisição de produtos associados a programas de televisão. (1)
Referências Bibliográficas
- PAPALIA, D. E.; MARTORELL, G. Desenvolvimento Humano. 14. ed. Porto Alegre: Artmed, 2022. v. 1.