Transtorno por Uso de Álcool (Alcoolismo): Critérios Diagnósticos, Características e Implicações Clínicas


Transtorno por Uso de Álcool (Alcoolismo): Critérios Diagnósticos, Características e Implicações Clínicas


Introdução

O Transtorno por Uso de Álcool (TUA) é um problema de saúde pública significativo, caracterizado por um padrão problemático de consumo de álcool que leva a comprometimento ou sofrimento clinicamente significativo (1). Este transtorno é definido por um agrupamento de sintomas comportamentais e físicos, que podem incluir abstinência, tolerância e fissura (1).


Terminologia e Impacto Global

Os termos atualmente mais aceitos para o que leigamente se denomina “alcoolismo” são “Transtornos mentais e comportamentais decorrentes do uso de álcool” (TMCA), conforme a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), e “Transtornos por uso de álcool” (TUA), segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). (3)

O TUA está associado a uma mortalidade significativa, sendo responsável por aproximadamente 3 milhões de óbitos anuais, o que corresponde a 5,9% de todas as mortes globais. Este índice supera as taxas de mortalidade relacionadas ao vírus da imunodeficiência humana (HIV) e à tuberculose. (3)


Padrões de consumo de Álcool

Definição de Dose-Padrão e Padrões de Uso

O conceito de dose-padrão é uma unidade de medida que padroniza a quantidade de etanol puro contida nas bebidas alcoólicas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece que uma dose-padrão contém aproximadamente 10-12g de álcool puro, equivalente, por exemplo, a 330ml de cerveja/chope, 100ml de vinho ou 30ml de destilado. Em contraste, o Departamento de Saúde dos Estados Unidos (USDA) considera 15g como a dose-padrão. (3)

OrganismoDose-Padrão (Álcool Puro)Equivalente CervejaEquivalente VinhoEquivalente Destilado
OMS10g300 ml100 ml30 ml
USDA15g350 ml150 ml45 ml

(3)

ClassificaçãoDefiniçãoCritério de DosesPrejuízo Funcional
Consumo Moderado (Baixo Risco)Consumo em quantidades que não causam prejuízosMulheres <65 anos: <2 doses/dia.
Homens <65 anos: <3 doses/dia.
Pessoas ≥ 65 anos: <2 doses/dia.
Não
Consumo Pesado (Risco Elevado)Padrão que excede o beber moderadoMulheres: >7 doses/semana ou 3 doses/ocasião. Homens: >14 doses/semana ou 4 doses/ocasião.Sim (Problemas associados ao consumo)
Beber Intenso (Heavy Drinking)Padrão que excede o beber moderadoNão há critério de dose preestabelecido.Sim
Beber ProblemáticoPadrão de consumo relacionado a problemas pessoais, interpessoais e comportamento de risco.Não há critério de dose preestabelecido.Sim
Beber Pesado EpisódicoPadrão de consumo de ~6 doses.≥ 6 doses/ocasião.Sim
Consumo Compulsivo Periódico (Binge Drinking)Padrão de consumo intenso em período prolongado e escolhido de modo proposital.Mulheres: ≥ 4 doses/ocasião.
Homens: ≥ 5 doses/ocasião.
Sim

(3)

É crucial ressaltar que a concepção de uma dose segura de álcool é questionada por alguns pesquisadores. Para determinados pacientes, nenhum nível de consumo de álcool pode ser considerado seguro. Exemplos incluem indivíduos em gestação, aqueles com história pessoal ou familiar significativa de TUA, ou a presença de hepatopatia ou pancreatopatia associada ao álcool. (3)

Critérios Diagnósticos (DSM-5)

A dependência é um transtorno crônico caracterizado pelo uso compulsivo de uma substância, resultando na incapacidade de controlar o consumo e no desenvolvimento de uma síndrome de abstinência após a interrupção do uso. (3)

Para o diagnóstico do Transtorno por Uso de Álcool, o indivíduo deve manifestar pelo menos dois dos seguintes critérios durante um período de 12 meses (1,3):

  1. Consumo excessivo: O álcool é frequentemente consumido em maiores quantidades ou por um período mais longo do que o pretendido.
  2. Desejo de redução: Existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso de álcool.
  3. Tempo gasto: Muito tempo é despendido em atividades necessárias para obter álcool, utilizá-lo ou recuperar-se de seus efeitos.
  4. Fissura: Um forte desejo ou necessidade de usar álcool.
  5. Fracasso em papéis importantes: Uso recorrente, resultando no fracasso em desempenhar papéis importantes no trabalho, na escola ou em casa.
  6. Problemas sociais/interpessoais: Uso continuado de álcool, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados por seus efeitos.
  7. Atividades reduzidas: Importantes atividades sociais, profissionais ou recreacionais são abandonadas ou reduzidas em virtude do uso de álcool.
  8. Uso perigoso: Uso recorrente de álcool em situações nas quais isso representa perigo para a integridade física (ex: conduzir veículos, nadar, operar máquinas).
  9. Consciência dos problemas: O uso de álcool é mantido apesar da consciência de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pelo álcool (ex: apagões, doenças hepáticas, depressão).
  10. Tolerância: Definida por qualquer um dos seguintes aspectos:
    • Necessidade de quantidades progressivamente maiores de álcool para alcançar a intoxicação ou efeito desejado.
    • Efeito acentuadamente menor com o uso continuado da mesma quantidade de álcool.
  11. Abstinência: Manifestada por qualquer um dos seguintes aspectos:
    • Síndrome de abstinência característica de álcool (sintomas que se desenvolvem aproximadamente 4 a 12 horas após a redução do consumo que se segue a uma ingestão prolongada e excessiva).
    • Álcool (ou uma substância estreitamente relacionada, como benzodiazepínicos) é consumido para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.

Gravidade Atual

A gravidade do transtorno é especificada com base no número de sintomas presentes (1):

  • Leve: Presença de 2 ou 3 sintomas.
  • Moderada: Presença de 4 ou 5 sintomas.
  • Grave: Presença de 6 ou mais sintomas.

Características Associadas e Consequências

O TUA está associado a mais de 200 condições clínicas, incluindo síndrome alcoólica fetal, cirrose hepática, pancreatite e diversos tipos de neoplasias. (3)

Principais Efeitos Nocivos:

  • Doença do Trato Digestório: Cirrose hepática e pancreatite.
  • Aumento no Risco de Câncer: Orofaringe, laringe, esôfago, fígado e mama.
  • Transtornos Psiquiátricos: Transtorno do humor, transtorno alimentar e transtorno ansioso.
  • Doenças do Sistema Nervoso Periférico: Neuropatia e miopatia.
  • Doenças Cardiovasculares: Hipertensão arterial sistêmica, doença coronariana e doença cerebrovascular.
  • Doenças do Sistema Nervoso Central: Epilepsia, demência e acidente vascular cerebral.

Fissura e Comportamento Perigoso

A fissura por álcool é indicada por um desejo intenso de beber, o qual torna difícil pensar em outras coisas e frequentemente resulta no início do consumo (1). Indivíduos com o transtorno podem usar álcool em circunstâncias que representam perigo para a integridade física, como dirigir ou operar máquinas (1). Além disso, o consumo pode persistir mesmo com o conhecimento de problemas físicos (como doenças hepáticas), psicológicos (como depressão) ou sociais/interpessoais (como brigas violentas ou abuso infantil) (1).

Comorbidades Psiquiátricas e Clínicas

O Transtorno por Uso de Álcool costuma estar associado a problemas semelhantes aos de outras substâncias, e o álcool pode ser usado para aliviar os efeitos indesejados de outras substâncias ou para substituí-las quando não disponíveis (1). Problemas de conduta, depressão, ansiedade e insônia frequentemente acompanham o consumo intenso e, às vezes, o antecedem (1).

A ingestão repetida de doses elevadas de álcool pode afetar praticamente todos os sistemas de órgãos, especialmente o trato gastrointestinal, o sistema cardiovascular e o sistema nervoso (1). Efeitos gastrointestinais incluem gastrite, úlceras e, em aproximadamente 15% dos indivíduos que ingerem álcool em grandes quantidades, cirrose hepática e/ou pancreatite (1). Há também um aumento nas taxas de câncer de esôfago, estômago e outras partes do TGI (1).

Adicionalmente, o TUA é um fator de risco para suicídio durante intoxicação grave e no caso de transtornos depressivo ou bipolar temporários induzidos por álcool. Há um aumento na taxa de comportamento suicida e de suicídio consumado entre indivíduos com o transtorno (1).


Epidemiologia e Curso da Doença

O Transtorno por Uso de Álcool é um problema de saúde prevalente. Nos EUA, estima-se uma prevalência de 12,4% entre homens adultos e 4,9% entre mulheres (1). A prevalência de 12 meses do transtorno entre adultos é mais alta em indivíduos de 18 a 29 anos e mais baixa naqueles com 65 anos ou mais, reduzindo-se na meia-idade (1).

O transtorno apresenta um curso variável, caracterizado por períodos de remissão e recaídas (1). Uma decisão de parar de beber, frequentemente em resposta a uma crise, tende a ser seguida por um período de semanas ou meses de abstinência, geralmente sucedido por períodos limitados de consumo controlado e não problemático. Contudo, uma vez que a ingestão de álcool é retomada, é muito provável que o consumo aumente rapidamente e que voltem a ocorrer problemas graves (1).


Exames Laboratoriais e Sinais Físicos

Certos exames laboratoriais e sinais físicos podem apoiar o diagnóstico e monitorar as consequências do uso de álcool:

  • GGT (gamaglutamiltransferase): É o indicador mais sensível do consumo intenso de álcool (1). Uma elevação modesta ou níveis elevados (>35 unidades) de GGT são significativos; cerca de 70% dos indivíduos com GGT elevado são consumidores persistentes de altas doses de álcool (em média, 8 ou mais doses diárias) (1).
  • ALT (alanina aminotransferase) e FA (fosfatase alcalina): Podem revelar danos hepáticos resultantes da ingestão maciça de álcool (1).
  • Triglicerídeos, HDL e ácido úrico: Embora não sejam específicos para o álcool, seus níveis podem estar alterados e auxiliar na avaliação (1).

Outros sinais físicos que refletem as consequências do consumo pesado persistente de álcool incluem dispepsia, náuseas e edemas, gastrite, hepatomegalia, varizes esofágicas e hemorroidas (podendo refletir alterações hepáticas) (1).


Tratamento:

A conduta clínica primordial no manejo do alcoolismo é a abstinência alcoólica total. O tratamento do alcoolismo envolve a gestão dos efeitos do consumo de álcool e a prevenção de recaídas.

Terapia Medicamentosa:

A terapia medicamentosa visa apoiar a abstinência e gerenciar os sintomas de abstinência, bem como as recaídas.

  • Benzodiazepínicos de longa ação (ex: Clordiazepóxido): Podem ser utilizados para reduzir os sintomas da abstinência e o risco de convulsões (2). Contudo, seu uso deve ser reduzido gradualmente ao longo de 1 a 2 semanas e, posteriormente, descontinuado devido ao seu potencial de uso abusivo (2).
  • Dissulfiram: Empregado como adjuvante da terapia comportamental em pacientes alcoólatras, após a fase de desintoxicação (2). É contraindicado em pacientes com risco de hipotensão (2).
  • Acamprosato: Pode auxiliar na manutenção da abstinência (2). Sua administração deve ser iniciada assim que a abstinência for atingida, podendo ser mantida mesmo em caso de recaída, e geralmente é recomendado continuar por um período de até um ano (2).
FármacoDefiniçãoMecanismo de AçãoPosologia (Adultos)ContraindicaçõesEfeitos Adversos Comuns
DissulfiramSensibilização ao álcoolInibidor da enzima aldeído-desidrogenaseDose inicial: 500 mg/dia por 14 dias.
Manutenção: 125 a 250 mg/dia
Cirrose, insuficiência hepática, epilepsia e gravidez.Rash cutâneo, disfunção sexual, acne, fadiga e gosto metálico na boca.
NaltrexonaAntagonista opioideBloqueio dos receptores de opioidesDose inicial: 25 mg/dia durante 2 dias.
Manutenção: 50 mg/dia.
Cirrose, insuficiência hepática, dependência de opioides e gravidez.Náusea, vômito, cefaleia e perda de peso.
AcomprosatoCoagonista de receptores do glutamato (NMDA)Bloqueio da excitabilidade glutamatérgicaPacientes >60 kg: 1998 mg/dia.
Pacientes <60 kg: 999 mg/dia.
Insuficiência renal grave, insuficiência hepática (Child-Pugh C) e gravidez.Cefaleia, diarreias, rash cutâneo e náuseas.

(3)

Farmacologia e Efeitos do Acetaldeído

O acetaldeído, um metabólito do álcool, geralmente não causa efeitos notáveis no organismo em condições normais. No entanto, sua concentração pode aumentar significativamente em certas circunstâncias, levando a efeitos tóxicos (2). Essa elevação tóxica do acetaldeído ocorre tipicamente quando fármacos que inibem a aldeído desidrogenase, como o dissulfiram e o metronidazol, são administrados (2).

A ingestão de álcool concomitante ao uso desses medicamentos pode provocar uma reação aversiva extremamente desagradável, caracterizada por:

  • Ruborização;
  • Taquicardia;
  • Hiperventilação;
  • Considerável pânico e angústia; (2)

Referências Bibliográficas

  1. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2018. 948 p.
  2. RITTER, J. M. et al. Rang & Dale Farmacologia. 9. ed. Guanabara Koogan, 2020. 789 p.
  3. SEGAL, Adriano; KUSSUNOKI, Débora Kinoshita; FREIRE, Cristina Cardoso (org.). Cirurgias Bariátricas e Metabólicas: Tópicos de Psicologia e Psiquiatria. 1. ed. Rio de Janeiro: Rubio, 2021. 272 p.